Sobre Juízes, Procuradores e Hackers.

Quando tentamos resolver uma questão jurídica de modo adequado, o primeiro passo é entendê-la de modo adequado e apresentá-la de modo adequado. Não falarei propriamente sobre as conversas hackeadas entre Moro, Dallagnol e os procuradores da Lava Jato. Em primeiro lugar porque há uma acirrada disputa em torno do tema onde argumentos racionais parecem ser os menos importantes; em segundo, porque me parece impossível, pelo menos por enquanto, chegar a uma conclusão segura em qualquer sentido.

Tentarei apenas expor as premissas que me parecem as mais importantes para se decidir se houve ou não parcialidade na Lava Jato, a partir das conversas hackeadas. Falarei sobre o comportamento de qualquer juiz em qualquer processo criminal complexo e suas implicações sobre como podemos interpretar e qual o valor podem ter conversas eletrônicas hackeadas.

A primeira premissa: o juiz não pode estar comprometido com nenhum resultado do julgamento, não pode compactuar nem com a acusação nem com a defesa, no sentido de conduzir o processo a um determinado julgamento ou a facilitar um determinado resultado. Essa é a premissa fundamental, a regra de ouro. Se for quebrada, o julgamento é injusto e deve ser anulado.

A segunda premissa: no direito brasileiro o juiz não é completamente neutro, embora deve ser imparcial. Entre nós, é amplamente admitido, sem qualquer dúvida na doutrina ou na jurisprudência, que o juiz busque a chamada verdade real. O juiz pode determinar a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156, II, CPC), ainda que as partes não tenham pedido; é o juiz quem interroga o réu, faz as perguntas e conduz o interrogatório (arts. 187 e 188, CPC);  o juiz pode determinar que testemunhas sejam ouvidas, mesmo que não tenham sido arroladas nem pela acusação nem pela defesa (art. 209, CPC); o juiz pode determinar a juntada aos autos de documentos que nenhuma das partes pediu (art. 234, CPC).

O nosso sistema é bem diferente do sistema americano que vemos nos filmes. Nos sistemas da commom law, o juiz não pode interferir no curso do processo, não pode arrolar testemunhas, juntar documentos, determinar diligências. Lá o juiz fica absolutamente inerte, acusação e defesa disputam livremente a melhor versão dos fatos: que vença o melhor. Se o réu quiser, pode até deixar de contratar um advogado e patrocinar sua própria defesa, o juiz não pode interferir. Isso não é possível aqui, pois o réu seria considerado indefeso e o processo seria nulo. Aqui, o juiz está, de certo modo, comprometido com o resultado justo do processo, mas não pode se comprometer nem com a acusação nem com a defesa.

Nosso sistema está mais próximo do sistema italiano, onde juízes e procuradores ou promotores pertencem à mesma carreira, ambos são magistrados e, portanto, atuam com muita proximidade, do que do sistema americano, onde os juízes ficam muito mais afastados do órgão de acusação. No Brasil, se entende que, embora o Ministério Público esteja comprometido com a acusação e, portanto, tenha uma atuação parcial, não tem a obrigação de pedir a condenação. O Ministério Público pode, inclusive, pedir a absolvição, é o órgão acusador, mas também está comprometido com um julgamento justo, ainda que em uma medida diferente.

Essa característica no nosso sistema se manifesta, inclusive, em um nível simbólico.  Nas salas de audiência e julgamento, promotores e procuradores sentam-se ao lado direito dos juízes, não assumem a posição propriamente de advogados. Nos tribunais também é assim, inclusive no Supremo Tribunal Federal. A Procuradora Geral da República senta-se ao lado direito do Presidente da Corte, participa do lanche nos intervalos de julgamento, tem acesso à Corte pelo mesmo acesso dos Ministros. Enquanto os advogados fazem suas sustentações e defesas da tribuna, os promotores e procuradores atuam da bancada, o mesmo lugar reservado aos juízes. Normalmente os membros do Ministério Público têm acesso mais facilitado aos juízes que os advogados.

Como se vê, o nosso sistema é mais ambíguo, mas a esmagadora maioria dos doutrinadores, além das decisões judiciais, não duvida que é um sistema capaz de produzir julgamentos justos. Embora haja alguns poucos questionamentos de uma minoritária doutrina a essa configuração, a verdade é que ela é muito antiga e amplamente aceita no Brasil, inclusive pela norma constitucional que equipara os deveres, vedações e garantias de magistrados e membros do Ministério Público (promotores e procuradores). Ademais, esses questionamentos são feitos de lege ferenda e não de lege lata, ou seja, o que se argumenta é que a Lei deveria mudar, estabelecendo uma nova configuração e não que essa configuração é inconstitucional.

Eu, particularmente, acredito que o juiz deveria ser mais inerte e equidistante das partes. Melhor seria que o juiz não pudesse produzir prova e que os promotores e procuradores tivessem o mesmo tratamento dos demais advogados, mas o meu argumento também é de lege ferenda. Ou seja, o fato é que nosso sistema não é assim. E, como eu disse, é amplamente aceito como um sistema capaz de produzir justiça.

A terceira premissa: por conta dessa configuração, é comum, sobretudo em casos complexos, que juízes, promotores e investigadores troquem informações, dentro de determinados limites. Quando o juiz autoriza uma grande operação de prisão ou busca e apreensão, por exemplo, há de coordenar com a polícia e o Ministério Público a melhor data, horário e lugar para ser feita, de modo a ocasionar o menor prejuízo à investigação, aos investigados e às pessoas que, eventualmente, possam ser indiretamente atingidas.

Quando o juiz autoriza escutas telefônicas, por exemplo, muitas vezes os pedidos e as decisões se sucedem muito rapidamente. A Lei não proíbe que, em casos urgentes, o juiz despache pelo celular ou pelo e-mail, desde que tudo seja documentado no processo. Isso, na verdade, é indispensável. Em alguns casos, criminosos trocam de linhas telefônicas duas ou três vezes por semana, sucessivos pedidos de quebra são necessários, buscas e apreensões têm que ser apreciadas com urgência para que provas não sejam destruídas. Se não houver uma comunicação célere, em tempo real, entre os juízes e os procuradores e investigadores, algumas operações simplesmente seriam impossíveis.

O juiz não joga no mesmo time dos procuradores e policiais, mas normalmente enxerga-os como agentes públicos, servidores pagos pelo Estado, que, em alguma medida, estão comprometidos com um julgamento justo e não com a condenação a qualquer custo. Isso pode ser um erro do nosso sistema, mas é assim.

Quarta premissa: para se entender todo o conteúdo de uma conversa em um aplicativo de mensagens, como Whatsapp ou Telegram, é fundamental entender o contexto de fala. O contexto de fala é estudado há muito tempo pela Teoria da Linguagem, é o que os filósofos chamam pragmática. Basta pensar em nossas próprias conversas. Qualquer pessoa que tenha suas conversas eletrônicas devassadas precisará dar muitas explicações para a mãe, a avó, a tia, o namorado, os amigos, o marido, a esposa. Essas conversas são muito rápidas, há muito conteúdo implícito, sentido figurado, piadas internas, enfim, expressões e modos de exprimir que só os participantes da conversa ou do grupo são capazes de entender completamente. Pode ser fácil captar informações objetivas dessas conversas, como por exemplo: “nos encontraremos tal hora em tal lugar”, “a cor do carro é azul”, “depositei tantos reais para fulano”, mas é difícil captar intenções, estados de espírito. Wittgenstein diria que cada conversa tem o seu próprio jogo de linguagem. É preciso checar com cuidado todo o histórico das mensagens e o contexto no qual foram trocadas, inclusive sua relação com os fatos que estavam ocorrendo no momento em que foram trocadas.

Quinta premissa: a doutrina e alguns julgados dos tribunais brasileiros entendem que a prova ilícita pode ser usada para beneficiar o réu. Isso, contudo, ainda não é completamente claro no direito brasileiro. Muitas questões nunca foram decididas pelos tribunais pátrios, como por exemplo: qual prova ilícita pode ser usada, qualquer uma ou apenas aquela que tem o potencial de deixar a inocência do réu livre de qualquer dúvida? Qualquer uma ou apenas aquela que foi produzida pelo próprio réu? É admitida a prova ilícita para absolver o réu, mas é também admitida para anular o processo?

Voltemos para as conversas hackeadas entre Moro, Dallagnol e os procuradores da Lava Jato. Parece impossível, por enquanto, chegar a conclusões com as informações que foram publicadas. O certo é que as conversas hackeadas são provas ilícitas para comprovar a suspeição do julgador. Resta saber (a) se essas provas ilícitas podem ser aceitas não propriamente para beneficiar o réu, mas para anular o processo; (b) se as mensagens são verídicas; (c) qual o contexto em que as mensagens foram trocadas. Se elas podem ser aceitas, se são verídicas e se o contexto indica comportamento comprometedor, resta ainda perguntar (d) se são capazes de, sozinhas, comprovarem a parcialidade do julgador, ou seja, que ele estava previamente comprometido com o resultado do julgamento.

O julgamento dessas questões pelos tribunais competentes poderá ajudar a definir melhor os papéis de juízes e procuradores, reafirmando o nosso sistema ou até mesmo sendo a mola propulsora para sua modificação. Resumo da ópera: no Direito, a solução de questões aparentemente simples envolvem raciocínios complexos, com uma série de consequências para casos futuros e, algumas vezes, até para a configuração do próprio sistema.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Doutor em Direito. Professor da UniChristus. Autor no livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

A Constituição Somos Nós

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 completou 30 anos no último dia 5 de outubro. A data não foi comemorada como deveria. Estamos todos angustiados, envolvidos no processo eleitoral mais tenso dos últimos 30 anos. Os dois candidatos que concorrem ao segundo turno das eleições presidenciais deixam dúvidas quanto ao seu compromisso com a ordem constitucional.

Um deles caracteriza-se pelas declarações desastradas contra as minorias e a favor da tortura. O outro chega a dizer em seu plano de governo que não vivemos uma ordem democrática, o tal plano “propõe uma verdadeira refundação democrática do Brasil para recuperar a soberania nacional e popular, atingidas duramente a partir do golpe de 2016”, diz que é necessário convocar uma assembleia constituinte para a instauração de uma nova ordem democrática.

Espanto.

A Constituição da República não merece esse tratamento. Mais reverência, senhores! A ordem constitucional inaugurada pela Constituição de 1988 tem sido construída a duras penas por milhões de brasileiros nos últimos 30 anos. Ela representa o que conseguimos fazer de melhor no Direito, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É um inestimável patrimônio jurídico. Pertence a todos nós, a todos nós obriga e abriga.

Ao contrário do que apregoam, as conquistas sociais das últimas décadas não são monopólio de um partido, PT ou PSDB, Lula ou FHC. Os presidentes não são reis todo-poderosos que põem e dispõem. Eles são bem menores que seus imensos egos podem fazer crer aos incautos. Menos. Menos. É a sociedade, com seus múltiplos atores, quem faz e desfaz. As sofridas conquistas alcançadas até aqui foram resultado de um processo político multifacetado, onde têm grande relevância os movimentos sociais e o fortalecimento das instituições democráticas. O presidente da República submete-se à Constituição e às leis. Isso é o Estado de Direito. Essa é a nossa maior garantia e a certeza de que, apesar dos políticos desastrados ou mal intencionados, continuaremos avançando.

A nossa salvação não está em nenhum político ou candidato. Os políticos e os partidos passam. A nossa salvação está na reverência à Constituição e às Leis, no respeito ao Estado Democrático de Direito e às regras do jogo, que todos devemos observar. Convocar uma assembleia nacional constituinte é drástico, trágico e profundamente desrespeitoso para com o povo brasileiro. Significa iniciar ou acabar uma guerra. As constituintes geralmente acontecem no começo ou no final de grandes conflitos sociais.

A nossa Constituição cidadã tem 250 artigos, mais os 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Já conta com 99 Emendas Constitucionais. Regula quase tudo, tem uma extensão incomum. Muitos a criticam, dizem que ela estaria desfigurada. Há até quem defenda fundar uma nova ordem constitucional, com a substituição da nossa Constituição por outra. Que isso venham de um candidato à presidência sob o argumento que vivemos um período de exceção é espantoso.

Já em 1987, durante os trabalhos constituintes, José Sarney chegou a dizer que a nossa “Constituição tornará o país ingovernável”. Temos vivido, contudo. Temos governado, contudo. Temos evoluído como povo e como nação. Poucos percebem que grande parte do que conquistamos de 1988 até aqui se deve à Constituição. Ela possibilita a alternância de poder, assegura a democracia pelo voto direto, secreto, universal e periódico, promove a proteção e inclusão das minorias, o combate à corrupção, a liberdade de expressão, garante o direito à saúde e à educação. Está tudo ainda incompleto, é verdade, mas, se houve avanços, foram possíveis por ela.

A Constituição, para além do que está escrito, é o sentimento do povo sobre o que está escrito. Esse sentimento se cristaliza ao longo da história, em um lento processo político, jurídico e argumentativo. A Constituição não são só os artigos e as emendas. A Constituição são as interpretações forjadas em milhares de decisões judiciais, são os milhões de debates havidos nas faculdades de Direito, nos jornais, nos movimentos sociais, nas associações, nas escolas, nos bares, nas casas, nas redes sociais. A Constituição sintetiza a maneira como entendemos e como vivemos o Direito.

A Constituição é nossa história jurídica viva, desenrolando-se, guiando-nos, transformando-nos e sendo transformada em um imenso movimento político jurídico em que todos os brasileiros são chamados a participar. Participam pelo voto, participam nos processos judiciais, nos processos legislativos e políticos, participam quando cumprem, quando violam e quando lutam pelo cumprimento da Constituição.

A Constituição de 1988 é, portanto, um imenso monumento social, cultural e jurídico que tem sido construído a duras penas pelo povo brasileiro nos últimos 30 anos. Somos nós. É a nossa história. É o nosso Direito. É o nosso modo de fazer Justiça aprendendo a fazer Justiça. É a nossa tentativa de construir uma sociedade livre, justa e solidária. São os nossos erros e acertos.

Há muitos artigos em nossa Constituição. Há muitas emendas. Não importa. Somos assim, somos possíveis assim, podemos ser uma grande nação assim. Estamos no caminho. Para além de tudo que pode ser e tem sido modificado, a Constituição tem um núcleo duro imodificável, a parte mais importante e sagrada para o nosso povo: as cláusulas pétreas. É em torno desse núcleo de valores sagrados que temos construído a nação brasileira.

A Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, promulgada logo depois da II Guerra Mundial, tem 146 artigos e deveria ter vigência só até que “uma Constituição tenha sido adotada em livre arbítrio por todo o povo alemão”, seria transitória. Ainda hoje, contudo, a Lei Fundamental de Bonn é a Constituição do povo alemão, mesmo depois da unificação das Alemanhas ocidental e oriental. Jamais foi votada uma constituição alemã. O que era transitório tornou-se definitivo porque aquele texto, com suas sucessivas camadas interpretativas, sintetiza os valores do povo alemão, seu sentimento jurídico. O Direito Constitucional alemão e a Constituição alemã são modelos para o mundo todo.

A Constituição dos Estados Unidos da América é a mesma desde 1787. Os americanos passaram por grandes e traumáticas transformações: a Guerra de Secessão, a abolição da escravatura, o movimento pelos direitos civis, as duas Grandes Guerras. Durante todos esses embates, ao longo de quase 250 anos, souberam conservar seu patrimônio jurídico e proteger sua história constitucional.

O maior legado e a maior tarefa de nossa Constituição é a construção de um Estado de Direito, um lugar onde todos saibam qual é a Lei e sejam tratados da mesma maneira pela Lei e por aqueles que aplicam a Lei. Ainda não temos um Estado de Direito perfeito e acabado, mas temos nos ocupado em construir um desde a promulgação da Constituição de 1988. É um trabalho demorado, algumas vezes aflitivo, outras vezes delicado. Apesar de tudo, temos avançado. Sobre o texto da Constituição de 1988, pedrinha por pedrinha, vamos construindo o Estado de Direito.

Se Deus não existe, tudo é possível”. Dostoiévski trabalhou com as consequências desse pensamento no seu imortal romance Os Irmãos Karamazov. Poderíamos dizer: se não há respeito à Constituição, tudo é possível. Mas, felizmente e apesar de alguns políticos, temos um Estado de Direito. São os brasileiros e as instituições forjadas pela Constituição de 1988 que o sustentam, não a ilusão de poder de alguns.

No segundo turnos das eleições de 2018, votarei em quem mostrar o maior apreço pela Constituição de 1988 e pelas instituições democráticas. Sem Constituição, sem Estado de Direito, não há desenvolvimento econômico, não há respeito pelas mulheres, nem pelos gays, nem pelos negros, nem pelos índios, não há saúde nem educação, não há segurança, não há liberdade de expressão.

Vida longa à Constituição de 1988!

Viva o Estado Democrático de Direito!

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor da UniChristus. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

 

23 anos, e aí?

Desde 1994, quando Fernando Henrique Cardoso foi eleito Presidente da República, o Brasil se vê polarizado entre PSDB e PT, PT e PSDB, nas principais disputas políticas. Quanto a isso, já se vendeu de tudo: “o PSDB foi melhor e o PT apenas surfou na onda”, “o PT distribuiu renda e governou para os mais pobres, enquanto o PSDB esteve mais comprometido com os donos do capital”, “cada um fez um pouco, o PSDB controlou a inflação, o PT distribuiu renda, precisamos continuar avançado”.

Desde 1995 são 23 anos. Uma criança que tenha nascido em 1995, se nasceu nas classes privilegiadas e andou bem, deve estar saindo da faculdade e procura o seu primeiro emprego. Se nasceu nas classes pobres e teve a sorte de não morrer na guerra entre a polícia, a milícia e o tráfico de drogas, vive em alguma periferia e sua perspectiva de emprego é péssima. 23 anos é muito tempo, daria para mudar tudo ou quase tudo.

O que fizeram PSDB e PT quanto ao que mais importa?

A reportagem do The Intercept que está nos comentários joga na nossa cara muitas incômodas verdades esquecidas. A partir de 1994, nós vivemos um período de grande euforia por razões estritamente econômicas, baseado no controle da inflação e num crescimento insustentável, onde se privilegio a mera expansão do consumo. A verdade é que ainda há quase tudo para ser feito.

Em 23 anos não fizemos praticamente nada. Há todo um país a ser construído. Ao contrário do que se diz, não somos um país rico. O brasileiro médio ganha aproximadamente 70% de um argentino médio, 64% de um chileno e 60% de um uruguaio. Sim, ao contrário do que você pode pensa e a pesar dos pesares, Argentina, Chile e Uruguai são países mais ricos que o Brasil. Somos o 50.º país do mundo quando se considera o PIB per capita e não a 9.ª potência mundial, como algumas vezes se diz.

Em todos esses anos não tivemos praticamente nenhuma melhora na educação. Ficamos por volta do 60º lugar dentre 75 países avaliados nos testes de matemática, ciências e leitura. Nosso sistema político continua tão concentrado, viciado e corrupto quanto sempre foi. A renda continua altamente mal distribuída e o sistema tributário cobra cada vez mais dos mais pobres e cada vez menos dos mais ricos.

O sistema de Justiça funciona muito mal. Não conseguimos fazer com que a lei seja aplicada de modo igual para todos. Há enorme concentração dos serviços bancários, o que faz com que nossos juros ao consumidor sejam dos mais caros do mundo. Para não falar da saúde, que é um luxo, metade das residências não tem esgotamento sanitário, o básico do básico. Aliás, nem segurança a gente tem, o básico do básico do básico. Então pergunto: o que PSDB e PT fizeram nos últimos 23 anos?

Muito provavelmente trabalharam para fazer você acreditar que cada um deles é a única hipótese possível de salvação da nação e os outros, bem, os outros são o inferno. Quanto mais polarizado o clima político, melhor para que tudo permaneça como antes.

Qual a boa notícia? A boa notícia é que ninguém se interessa muito por nada disso e, feliz ou infelizmente, ainda não explodiu uma revolta social. A má notícia? Não há sinal algum de que alguma coisa mude nas próximas eleições.

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz federal. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

Feliz Dia da Justiça!

11 de agosto é dia da Justiça. Dia do advogado, da advogada, do defensor e da defensora pública, dia dos procuradores e procuradoras, dia dos promotores e promotoras, dia dos juízes, juízas, desembargadores e desembargadoras, ministros e ministras, dia de todos os servidores do Poder Judiciário, dia de todos aqueles que trabalham para que a Justiça aconteça. A Justiça é resultado do trabalho de uma multidão de gente e o nosso resultado não é bom.

O Brasil tem mais de 1 milhão de advogados, cerca de 18 mil juízes, 280 mil servidores, 160 trabalhadores auxiliares, pessoas que não têm cargo efetivo, mas, de algum modo, prestam serviço ao Poder Judiciário. Gastamos 1,3% do PIB só com o Poder Judiciário. Está fora da conta o que é gasto com advogados, públicos e privados, Ministério Público, e com todas as demais pessoas que trabalham para solucionar litígios: peritos, secretários, assistentes jurídicos etc. Ao todo, fazendo uma estimativa bem por baixo, o Brasil gasta cerca de 50 a 60 bilhões de dólares, de recursos públicos e privados, com a Justiça, ou cerca de 200 bilhões de reais. Uma estrutura imensa e cara.

Ainda assim, as pessoas confiam muito pouco na Justiça. Os processos demoram absurdamente. É fácil prender negros pobres, com baixo grau de instrução, mas muito difícil punir ricos e poderosos. É muito fácil escapar do pagamento de dívidas e da cobrança de tributos, mas difícil cobrar na Justiça o que é devido. O nosso sistema parece privilegiar aqueles que descumprem a Lei.

A maioria das pessoas pensa que tudo é assim porque os juízes trabalham pouco e os advogados são despreparados. A verdade é bem mais complexa e desconcertante. Os juízes brasileiros estão entre os mais produtivos do mundo, segundo dados do CNJ. Temos excelentes cursos de graduação e pós-graduação em Direito, os advogados saem cada dia mais preparados para defender os interesses de seus clientes. A informação circula na internet praticamente sem barreiras.

Não é verdade que nós temos um sistema bom operado por pessoas despreparadas, preguiçosas ou corruptas. Isso infelizmente não explica tudo. Aliás, explica muito pouco do mal funcionamento da Justiça. A verdade é que nós temos um sistema péssimo, na maioria das vezes operado por pessoas bem intencionadas, que oscilam entre a frustração, obstinação, desespero e resiliência.

É preciso dizer com todas as letras e a plenos pulmões: a nossa Lei premia quem a descumpre, nosso sistema processual faliu há muito tempo. Há alguns anos tentamos remodelá-lo sem sucesso. Com o número de recursos que temos, é praticamente impossível assegurar que a Lei seja cumprida de modo igual para todos, em curto tempo. Uma causa, por mais simples que seja, pode ter pelo menos 12 recursos e ser decida não 2, mas até 6 vezes. Nos juizados especiais, onde tramitam as pequenas causas, de até 60 salários-mínimos, uma causa pode passar por até 6 instâncias. Seis.

Não conseguimos construir um sistema onde as causas sejam julgadas apenas 2 vezes. Não nos conformamos com o fim do processo, com a decisão final. Ao invés disso, criamos mais recursos, mais instâncias recursais, contratamos mais juízes, mais servidores, formamos mais bacharéis em Direito, procuramos a justiça perfeita, e continuamos atolados.

Apesar de tudo isso, dia após dia, milhares de juízes, advogados, defensores, promotores, servidores teimam em acreditar na Justiça, tentam fazê-la melhor. O trabalho de todos eles é enxugar gelo. Durante os mais de 15 anos como juiz e outros tantos como advogado e estudante de Direito, conheci muitos, a maioria me deixou uma lição importante, me inspirou, me animou a seguir adiante. Essas pessoas acreditam que é possível fazer um Brasil melhor e mais justo e trabalham todos os dias para isso. Enxugam gelo incansavelmente.

É para todas essas pessoas que vai minha homenagem hoje! Feliz dia da Justiça!

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor da obra Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

Sobre a Possibilidade de Prisão em 2ª Instância

Fiz um pequeno contraponto ao artigo do querido amigo e grande processualista, Professor Doutor Sérgio Rebouças (disponível em https://www.facebook.com/sergio.reboucas/posts/1756945617700180), sobre a possibilidade de prisão após julgamento em 2.ª instância. Ei-lo:

Caro amigo Sérgio Rebouças,

Recebi o seu belíssimo texto em outro grupo; como sempre claro, de raciocínio linear. Escrevo para lhe parabenizar! Infelizmente não concordo com as conclusões do amigo, quis lhe dizer de antemão.

O seu texto é a brilhante visão do processualista que respeito e admiro. Sem pretender convencê-lo da minha própria opinião, ouso apresentar-lhe algumas breves notas. Infelizmente a minha breve crítica não honrará completamente o seu texto, exclusivamente pela exiguidade do tempo. Precisamos marcar para debater isso, mas, nas raras vezes que nos encontramos, há sempre tanta coisa mais importante para falar!

Restrinjo-me, então, a um único e apressado ponto. A sua análise parece ter priorizado uma interpretação literal do texto constitucional. Entendo que seja por segurança, receio que uma interpretação ampliada possa conduzir à violação dos distritos e garantias fundamentais pela Suprema Corte. Valoroso motivo.

No entanto, a avaliação de uma questão constitucional tão complexa não pode dispensar os métodos de interpretação propriamente constitucionais. A teoria constitucional desenvolveu-se inteiramente ao redor desses métodos, pelo menos nos últimos 100 anos.

Mesmo a interpretação literal proposta não foi tão literal, é preciso reconhecer. A Constituição diz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A extensão da culpa é indeterminada no texto. Quando quis falar de prisão, a Constituição o fez expressamente, como no inciso LXI.

À luz da exclusiva literalidade do texto é impossível afirmar que (a) a prisão é permitida após condenação em segundo grau; ou (b) a prisão não é permitida após condenação em segundo grau. Precisamos ir além do texto, através do texto.

A Constituição traz outros princípios de igual estatura ao princípio da presunção de inocência. É objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre justa e solidária (art. 3.º). O art. 5.º, já no caput, assegura o direito à segurança, toda a doutrina o reconhece como um princípio. O art. 37 eleva a probidade administrativa a princípio constitucional. Não há hierarquia entre esses princípios, mas tensão permanente entre eles, tensão que se resolve pela interpretação constitucional.

Como afirmar que a impunidade, a corrupção, o homicídio, a dilapidação do patrimônio público, o latrocínio, o tráfico, o estupro e outros crimes graves não ofendem esses princípios? Como afirmar que nosso sistema legal, que infelizmente não permite punir em tempo minimamente razoável esses crimes não ofende esse princípios? Você mesmo parece concordar em seu texto que o nosso sistema não é o melhor sistema. Ora, se o nosso sistema padece de evidente inconstitucionalidade, por não entregar aos brasileiros aquilo que a Constituição obriga que seja entregue, como admitir que a interpretação constitucional seja outra que não aquela que o torne efetivo?

Os brasileiros não têm uma sociedade livre, justa e solidária. Em grande parte em razão de nossa escandalosa impunidade. A interpretação que você sugere, garante direitos fundamentais de réus acusados de crimes graves e condenados por duas instâncias da Justiça brasileira, mas ofende inadvertidamente os direitos fundamentais de milhões de brasileiros, muitos deles sem voz, sem rosto, marginalizados. Direitos fundamentais à segurança, à justiça, à saúde, à educação, à dignidade, a serem governados por agentes probos, enfim, direito fundamental ao império da Lei: a razão de ser do próprio ordenamento jurídico e do Estado Moderno e, por meio dele, de tudo que conseguimos construir de civilizado nos últimos cinco mil anos.

Entre as duas interpretações qual resulta em maiores benefícios e menores prejuízos para o conjunto da sociedade brasileira? Será que para atingir nossos tão sonhados objetivos e construir uma sociedade livre, justa e solidária, precisamos garantir que condenados em duas instâncias só cumpram pena após a condenação por uma terceira e por uma quarta instância, em processos que nossa legislação faz intermináveis? Será que a prisão após julgamento em segunda instância importará tantas e tão graves ofensas aos acusados a ponto de suprimir os benefícios com a diminuição de nossas assustadoras taxas de impunidade?

Você poderia argumentar: ora, mude-se a lei. Esse é o papel do legislador e não do Supremo. Pois me permita dizer que a Constituição existe para assegurar que os direitos nela inscritos não sejam obstados, afastados ou suprimidos pela injustiça da lei, pela inconstitucionalidade da lei. É precisamente isso que as Cortes Constitucionais têm feito ao longo do último século, asseguram que os valores e princípios constitucionais sejam efetivados, seja quando a voz da minoria é esmagada pela maioria, seja quando a voz da maioria não é ouvida pela minoria parlamentar que capturou o poder.

Querido amigo, esse debate é muito instigante. Não sabemos, afinal, qual de nós tem razão. Espero de todo coração que a Suprema Corte tome a melhor decisão e a sociedade brasileira beneficie-se dela, tendo maior esperança no Direito. Receba essas minhas breves notas como um estímulo ao seu maravilhoso trabalho de doutrinador e marca de meu respeito e admiração.

Forte abraço,

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal. Doutor em Direito Constitucional. Professor de Direito da UniChristus. Autor das obras: Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil? e Uma Teoria da Decisão Judicial: fundamentação, legitimidade e justiça.

Se a Democracia Perecer Amanhã

Democracias dependem do Estado de Direito, essa coisa que ingleses e americanos chamam rule of law. Sem rule of law, as democracias não funcionam, não florescem.

Para dizer que vivemos em um Estado de Direito, duas condições mínimas devem ser observadas: (a) todos sabem ou podem saber qual é a Lei; (b) a Lei se aplica de modo igual a todos. Parece simples, mas não é fácil cumprir esses requisitos. No Brasil, ainda não conseguimos.

As recentes idas e vindas da Suprema Corte para decidir se a prisão em segunda instância é ou não possível, à luz da Constituição, ilustram bem o ponto. A insegurança jurídica gerada pelas sucessivas decisões tem dado azo a todo tipo de manifestações, desde grupos políticos que ameaçam partir para a luta armada se Lula for preso, até generais do Exército que falam em intervenção militar se ele não for.

Se todos soubessem de antemão qual a Lei em vigor: possibilidade ou impossibilidade de prisão após condenação em segundo grau; se a Lei fosse aplicada para todos, não importa se Lula, Aécio, Eduardo Cunha, Temer ou o Seu Zé, teríamos mais racionalidade no debate público e maior respeito à democracia.

Esse é apenas um exemplo que se aplica a muitas outras situações, em que se evidenciam dois problemas: (a) não sabemos qual a Lei em vigor porque a interpretação dos tribunais muda com espantosa frequência; (b) não conseguimos aplicar a Lei de modo igual para todos. É extremamente difícil punir ricos e poderosos e assustadoramente fácil prender, até matar, jovens negros pobres.

Toda democracia, em uma hora ou outra, vive momentos de tensão excruciante, como o que vivemos agora. O que salva a democracia nessas horas é a Lei, a clareza da regra do jogo e a certeza de que será aplicada de modo igual para todos. Imagine um jogo de futebol em que pênaltis não fossem marcados ou só fossem marcados contra um dos time ou contra alguns dos jogadores. Terminaria em pancadaria.

Com a democracia é igual, o que nos mantém unidos é a certeza de que a Lei, nosso código de convivência, será aplicada de modo igual contra ou a meu favor, contra ou a favor de quem quer que seja. Quando temos essa certeza, aceitamos derrotas e comemoramos vitórias. Quando essa certeza nos escapa, recorremos às amizades, ao suborno, à corrupção ou até à força bruta para impor nossa vontade. É o salve-se quem puder e dane-se a Lei.

Se a democracia perecer amanhã, não poderemos dizer se acabou antes ou depois do Estado de Direito. Se escapar, é bom levarmos mais a sério a rule of law.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

Tudo Dentro do Esperado: Sucumbimos à Era da Pós-Verdade

Há muito tempo, o discurso público se dissociou da verdade. Talvez essa seja a causa seminal da nossa tragédia. Ao debatermos políticas públicas, ao propor soluções para os problemas do Brasil, não nos interessa analisar e contrapor argumentos à luz da verdade. Tudo se resume a algum jogo de interesses, onde a verdade acaba sendo instrumentalizada.

 

Já não confiamos no interlocutor. Olhamos para o outro com ódio. Ignoramos seus argumentos. Bem-vindos! Chegamos à era da pós-verdade. A verdade foi sacrificada à ideologia, à opinião, ao frisson. A esfera do debate, que também seria a esfera do encontro respeitoso, da troca construtiva, foi quase completamente aniquilada. Nunca a liberdade de expressão foi tão plena, jamais foi tão mal aproveitada.

 

Argumentar exige esforço, pensamento racional e respeito pelo outro. Não temos tempo, contudo. As redes sociais nos empurram em busca da próxima notícia, da próxima sensação, do próximo escândalo, do próximo judas. A imprensa, perdida, procura algum ponto de apoio para sobreviver. Pelo menos diz que procura, mas também se entrega ao caminho fácil da pós-verdade.

 

O debate na imprensa está cada vez mais parecido com o debate nas redes sociais. Há alguns dias a Folha de São Paulo, o Estadão e outros grandes jornais e veículos de comunicação noticiam escandalizados e escandalosamente que os juízes recebem auxílio-moradia em virtude de liminar concedida pelo Ministro Luiz Fux. Nenhuma reportagem analisa os argumentos do Ministro. Nenhuma. A decisão do Ministro Fux é solidamente fundamentada, mas o que importa?

 

O auxílio-moradia não é exclusivo dos juízes. É recebido por muitas outras categorias de servidores públicos. A LOMAN disciplina-o e estabelece que será devido sempre que “não houver residência oficial à disposição do magistrado”. É a Lei. O pagamento da verba nada tem de ilegal. Nada tem de imoral. É simplesmente a Lei. A pós-verdade substituiu a Lei, contudo. Pobre de nós.

 

Ninguém desconhece nos grandes veículos de comunicação que o auxílio-moradia é praticado também por muitas empresas privadas, que pagam o aluguel, oferecem ajuda de custo ou imóveis aos seus funcionários mais graduados. Dizer que a verba não é devida aos juízes que têm casa própria é como dizer que o trabalhador que tem carro não tem direito ao vale-transporte ou aquele que almoça em casa, ou trás o almoço de casa, não tem direito ao vale-alimentação.

 

Todo os “penduricalhos” que os juízes federais e procuradores da República recebem são pagos a muitos outras categorias de servidores públicos. Tudo nos termos da Lei. Mas a sensação do momento são os contra-cheques de Moro, Bretas e Dallagnol.

 

Com todos os “penduricalhos” incluídos, os salários dos juízes estão longe de ser os maiores do serviço público. Claro, a remuneração dos juízes sempre pode e deve ser auditada. As verbas devem ser fiscalizadas, pode-se propor modificações na estrutura remuneratória. Mas a discussão tem sido feita nos termos adequados? Justifica que os grandes jornais apresentem o tema como um dos grandes males da nação? Não temos “imoralidades” maiores com as quais nos escandalizar?

 

Aos que ainda se importam, aos que resistem e trabalham pela construção de um país mais justo, eu os concito: exerçamos o juízo crítico, concordemos ou discordemos do auxílio-moradia, da reforma da Previdência, da reforma trabalhista, da condenação de Lula, das 10 medidas contra a corrupção, ou do quê quer que seja, que ninguém nos paute. Sigamos juntos o caminho da verdade, dos argumentos sólidos, com boa-fé. O Brasil nunca dependeu tanto disso.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

Para Entender a Prova no Caso Lula

É engraçado como muita gente diz que não há provas para a condenação de Lula. Dizem isso sem ter a mínima noção do que seja prova e de como se considera um fato provado ou não provado. Bons jornalistas repetem essa bobagem. Intelectuais, nacionais e estrangeiros, repetem essa bobagem. O slogan do partido dos trabalhadores, na campanha para salvar Lula, é “cadê a prova?”.

A nossa sociedade se vê cada dia mais envolvida em julgamentos e decisões judiciais. Impressiona que os meios de comunicação trabalhem tão mal os conceitos mais elementares do mundo jurídico. Alguns se aproveitam da desinformação para difundir ideias incorretas e confundir o público.

No direito penal, alguém só pode ser condenado se houver provas “além da dúvida razoável” de que praticou um ato definido em lei como crime. O que significa “além da dúvida razoável”? Significa que o grau de certeza de que o fato criminoso ocorreu (materialidade) e o grau de certeza sobre quem praticou o fato criminoso (autoria) devem ser altos. Quão alto? À luz das provas, uma pessoa razoável não pode ter dúvida razoável de que o fato ocorreu como descrito na acusação.

Mas o que é a prova? A prova é qualquer elemento conhecido (documentos escritos, áudios, vídeos, depoimentos, perícias etc.) que aponte para um fato desconhecido, mas que pode ser provado, ou seja, pode ser conhecido, a partir de fatos conhecidos. Provar é, portanto, conhecer um fato desconhecido a partir de outros fatos conhecidos.

O verbo conhecer é empregado aqui em um sentido muito específico. O ser humano conhece o mundo pelos sentidos: visão, tato, olfato, audição e paladar. Imagine que um promotor queira provar que Fulano matou Sicrano. Ele não viu Fulano matar Sicrano, o juiz também não viu. Se eles não viram, para eles esse é um fato desconhecido. Mas o juiz pode conhecer o fato, ter um alto grau de certeza de que o fato aconteceu, por meio da prova. Por exemplo, alguém diz que viu Fulano matar Sicrano com uma arma. Isso é um depoimento testemunhal. A perícia atesta que a bala encontrada no corpo de Sicrano é compatível com a arma de Fulano. Isso é outra prova, uma prova pericial.

A partir desses elementos o juiz pode ter certeza “além da dúvida razoável” de que Fulano matou Sicrano. O papel da defesa é plantar dúvidas. A melhor estratégia nesse caso seria desacreditar a testemunha. Se a testemunha não é confiável e o julgador só tem a testemunha e a perícia, pode remanescer uma dúvida razoável para afirmar que o crime foi praticado por Fulano.

As provas podem ser diretas ou indiretas. A testemunha que viu o crime é uma prova direta porque ela se refere ao próprio fato (o ato de Fulano atirar em Sicrano). A perícia é uma prova indireta porque ela não se refere ao próprio fato que se quer provar (Fulano atirar em Sicrano), ela atesta apenas que a bala encontrada no corpo de Sicrano é compatível com a arma de Fulano, mas a perícia não se refere ao fato em si, ao ato de atirar. Não se pode dizer, somente pela perícia, que o crime de fato aconteceu como narrado na denúncia (Fulano atirou em Sicrano). Alguém pode ter roubado a arma de Fulano e ter matado Sicrano, por exemplo. A testemunha pode estar mentindo para prejudicar Fulano.

A prova indireta é chamada indício porque ao dar conhecimento de um fato que não é o fato criminoso, ela indica, aponta para o fato que se quer provar. O indício estabelece uma ligação racional entre um fato conhecido e o fato desconhecido que se quer provar. Tanto as provas diretas como as provas indiretas são provas e têm igual valor. Muitas vezes, a prova indireta é mais importante e mais confiável que a prova direta.

Nunca mais, caia na conversa fiada que diz: “não há provas, apenas indícios”. Indício é prova e deve ser levado em conta para a prova do fato criminoso tanto quando a prova direta. Os indícios podem servir, inclusive, para afastar a condenação. Muitas vezes, as provas indiretas são capazes de provar o fato criminoso com maior certeza que as provas diretas. Como normalmente são numerosas e apresentam diversos aspectos do mesmo fato, elas são mais seguras. Vamos ver como isso é possível.

Imagine o mesmo exemplo anterior sem uma prova direta, “apenas” indícios. Ninguém viu Fulano atirar em Sicrano. Não há testemunhas. A única prova é um vídeo. Uma câmera de segurança captou o momento em que Fulano e Sicrano entram juntos em um beco. Não há saída do beco, a não ser pela mesma entrada captada pela câmera de segurança. Quem entra tem que sair pelo mesmo lugar. Poucos minutos depois, apenas Fulano sai. Em seguida, Sicrano é encontrado morto pela próxima pessoa que entra no beco, uma freira da Ordem dos Pregadores que fazia um trabalho de recuperação de viciados nas redondezas. Ninguém viu Fulano matar Sicrano. Há apenas a filmagem. Quem matou Sicrano? Sicrano pode ter se suicidado. A freira, terceira pessoa a entrar no beco e que chamou a polícia, pode ter matado Sicrano. Adicionemos mais alguns elementos de prova indiciária. A arma do crime não é encontrada. A perícia concluiu que a bala entrou pelas costas, o suicídio é impossível. Testemunhas afirmam que havia uma disputa entre Fulano e Sicrano. O crime está provado?

Nesse caso, em que não há uma testemunha, nenhuma prova direta portanto, o poder de convencimento da prova é mais forte que no caso anterior. Afinal, o vídeo é mais confiável que uma testemunha. No exemplo anterior, a testemunha poderia estar mentindo. Nesse caso, é quase impossível explicar o homicídio de outro modo que não seja Fulano tendo assassinado Sicrano, a não ser que você acredite que a freira é uma psicopata.

Isso é a análise da prova. Toda análise da prova é a montagem de um quebra-cabeça, como a reconstrução de um vaso quebrado. Nós conseguimos algumas peças (os fatos conhecidos) e, a partir delas, podemos dizer com um alto grau de certeza qual era a forma do vaso (fato desconhecido). Mas nunca é possível colar todas as peças e ter o vaso de novo. O vaso se quebrou, o fato aconteceu e se perdeu no tempo.

No caso de Lula, como vimos pela sentença e pelo julgamento do TRF4, as provas são avassaladoras, numerosas e extremamente detalhadas. Há dezenas de pedaços do vaso quebrado. São contratos, declarações de imposto de renda, troca de mensagens eletrônicas, depoimentos, perícias etc. Apenas para se ter uma ideia, todas essas provas, os pedaços do vaso, são detalhadas ao longo de 142 páginas da sentença do juiz Moro (da página 51, item II.12 à página 192, item II.16). Para quem tiver curiosidade, está aqui o link: https://abrilveja.files.wordpress.com/2017/07/sentenc3a7a-lula.pdf. Dizer que não existem provas é puro desconhecimento, ilusão ou má-fé. Sim, pode-se questionar ou por em dúvida a prova. Esse é o trabalho da defesa. Mas, no caso Lula, as provas são tão numerosas e coerentes entre si que a defesa, ao invés de plantar dúvidas sobre cada uma das numerosas provas, assume a estratégia de dizer que não existem provas em absoluto, acusam os julgadores de parcialidade e invocam outras dezenas de preliminares que teriam por fim anular o julgamento.

A partir de todas as dezenas de provas citadas na sentença e mencionadas no julgamento, vou tentar fazer um resumo, ainda que imperfeito, dos fatos conhecidos. Quanto a esses fatos praticamente não há controvérsia. Não serei exaustivo. A sentença e o acórdão trazem centenas de elementos, em centenas de páginas de análise. Aqui estou apresentando apenas um resumo muito pequeno. O meu objetivo não é absolutamente analisar ou discutir a prova no caso Lula, muito menos a decisão. O objetivo é apenas demonstrar o raciocínio lógico por trás da análise da prova. Percebam como grande parte da mídia, assim como muitos articulistas opinião não fazem isso, desfocando completamente a discussão. Vamos aos fatos conhecidos:

  1. Lula foi Presidente da República e diretamente responsável pela indicação do Conselho de Administração e, consequentemente, dos diretores da Petrobrás;
  1. Empreiteiras, inclusive a OAS, em consórcio com alguns diretores, fraudaram licitações e desviaram dinheiro de diversos contratos da Petrobrás. Esse dinheiro ia para partidos políticos. Isso está fartamente evidenciado em depoimentos, extratos bancários, contratos, perícias etc. Já houve, inclusive, devolução de parte dos recursos;
  1. A OAS assumiu o empreendimento do condomínio Solaris, após a falência da Bancoop, fazendo uma operação que não costumava fazer;
  1. Lula e a esposa tinham contrato de aquisição de um apartamento-tipo no edifício Solaris;
  1. Há um documento rasurado e sem assinatura encontrado na residência de ex-Presidente Lula que indica que, em algum momento, o apartamento-tipo foi substituído pelo triplex. Lula disse não saber a origem do documento;
  1. Lula e Marisa pagaram 50 prestações pelo apartamento-tipo (cerca de R$ 209 mil) até 2009, depois não pagaram mais. Na época, o valor do triplex era de R$ 922.603,26;
  1. Com a transferência do empreendimento para a OAS, todos os cooperados da Bancoop tiveram que optar (no prazo de 30 dias) entre desistir do empreendimento e ter o dinheiro devolvido ou assinar novo contrato com a OAS;
  1. Lula não fez uma coisa nem outra até 26/11/2015, após a prisão de Leo Pinheiro, quando requereu a desistência do contrato;
  1. A OAS vendeu o apartamento-tipo que teria sido adquirido por Lula, mas sempre manteve reservado o triplex, que nunca foi posto à venda;
  1. Leo Pinheiro fez visitas com Lula e D. Marisa ao apartamento. Lula afirma que essas visitas ocorreram porque Leo Pinheiro queria vender para ele o apartamento, mas ele, depois de ponderar, por fim recusou a oferta;
  1. A OAS fez diversas alterações no triplex, instalaram móveis, cozinha, piscina e elevador, submetendo antes o projeto à aprovação de D. Marisa ou Lula. Lula nega que as reformas tenham sido submetidas a ele ou à D. Marisa;
  1. Com as alterações e reformas foram gastos cerca de R$ 1,2 milhões;
  1. A OAS não costuma fazer alterações como essa em nenhum outro imóvel;
  1. Jamais o presidente da OAS foi pessoalmente vender um apartamento para qualquer outro cliente;
  1. Testemunhas afirmaram que era de conhecimento comum entre moradores e funcionários do condomínio Solaris que o triplex estava sendo preparado para e era propriedade de Lula.

Esses fatos, como já disse, são confirmados por inúmeros elementos de prova, e são praticamente incontroversos. Além desses fatos há inúmeros outros. A questão é saber se esses fatos em conjunto permitem concluir “além da dúvida razoável” que as acusações contra Lula são verdadeiras. Esse é o raciocínio. Essa é a discussão relevante.

O depoimento de Leo Pinheiro não é reconhecido pela defesa. O principal argumento da defesa é que Léo Pinheiro também é acusado e firmou um acordo de colaboração premiada. De fato, é preciso muito cuidado com o depoimento de colaboradores, mas se o depoimento é confirmado por inúmeros outros elementos de prova, passa a ser relevante. Há diversos pontos importantes no depoimento de Léo Pinheiro, cito três. Ele diz que (a) quando a OAS assumiu o empreendimento edifício Solaris, Vaccari o advertiu que o triplex estava reservado para Lula e sua família; (b) depois disso, Leo Pinheiro procurou Vaccari, a fim de solucionar o passivo do triplex; (c) Vaccari teria conversado com Lula, depois autorizou Leo Pinheiro a abater o valor da diferença do triplex e das reformas da conta geral de propina do PT.

O que o juiz e os desembargadores disseram é que, à luz desse conjunto de dezenas de elementos (que eu tentei resumir em alguns tópicos) se pode afirmar “além da dúvida razoável” que Lula recebeu uma vantagem indevida em razão do exercício do cargo de Presidente da República e que escondeu o recebimento dessa vantagem. A acusação é de que recebeu vantagem indevida (triplex) e escondeu e recebimento dessa vantagem. Daí porque não faz nenhum sentido dizer que não há prova de que Lula é o dono do triplex. Se houvesse essa prova, não haveria crime de lavagem de dinheiro.

Sim, há outras explicações possíveis para esses fatos. Sim, você pode não concordar com a conclusão do juiz e dos desembargadores. Algumas pessoas podem permanecer na dúvida. Por exemplo, você pode acreditar que a OAS e o Léo Pinheiro fizeram isso porque gostavam muito do Lula, mas isso não tem nada a ver com o fato de Lula ser Presidente, muito menos com os contratos da Petrobrás. Foi pura e exclusivamente amizade. Nesse caso, o que você está dizendo é que houve vantagem, mas ela não foi oferecida em razão do cargo.

Você pode acreditar que Leo Pinheiro estava apenas querendo vender o triplex e por isso fez reformas no valor de R$ 1,2 milhões, sem garantia de venda. Nesse caso, você está dizendo que não houve vantagem. Nessa hipótese, fica difícil explicar porque o triplex permaneceu tanto tempo como unidade reservada e jamais foi vendido ou alugado. Mas você pode acreditar que Leo Pinheiro, rico, tenha seus caprichos: só vendo se for pro ex-Presidente.

Você pode também acreditar que Léo Pinheiro está envolvido em uma trama para prender Lula. Nessa hipótese, Léo Pinheiro estaria mentindo sobre Lula, exclusivamente para prejudicá-lo, correndo o risco de ver o acordo desfeito. Não sei se faz muito sentido, considerando que Léo Pinheiro poderia centrar a colaboração em outros pontos e não falar de Lula. Outro problema dessa hipótese são os inúmeros fatos conhecidos que confirmam a acusação independentemente do depoimento do colaborador.

Ou você pode sair por aí repetindo que não há provas, que tudo isso não passa de uma armação, que as provas foram forjadas, que Lula está sendo perseguido. Juízes e procuradores estão trabalhando para afastar Lula da disputa eleitoral. Mas aí é o caso de perguntar: você também acredita em Papai Noel?

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

A Parcialidade do Julgamento de Lula: os 4 elementos de Ferrajoli.

Li com surpresa a carta do professor Luigi Ferrajoli, publicada na Carta Capital, no último dia 18 de janeiro. Nela, o professor expressa suas “preocupações em relação às formas com que o julgamento contra o ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, foi criado e conduzido”. (https://www.cartacapital.com.br/politica/luigi-ferrajoli-e-clara-a-parcialidade-no-julgamento-de-lula)

Como vocês sabem, sou juiz e professor, poeta nas horas insones. Admiro o professor Ferrajoli. Sempre votei no Lula, desde os 16 anos. Como professor de Direito Constitucional, me preocupa que um jurista italiano consiga ver ameaças ou violações dos juízes brasileiros a princípios constitucionais onde eu não consigo. Os professores de Direito devem ser muito sensíveis a esses assuntos. É nosso dever. É absolutamente necessário. Daí porque se faz premente uma escuta muito judiciosa dos argumentos do professor Ferrajoli. Uma análise ponto a ponto.

O professor Ferrajoli diz que o processo contra Lula desperta uma impressão de “ausência impressionante de imparcialidade” em extenso setor da cultura jurídica democrática italiana. Essa ausência de imparcialidade seria confirmada por quatro elementos principais: (a) campanha da mídia contra a figura de Lula, alimentada por um inaceitável protagonismo dos juízes; (b) ativa promoção por parte do juiz das delações premiadas e tendenciosa petição de princípio na avaliação das provas; (c) simultaneidade com o impeachment; (d) os juízes teriam acelerado a tramitação do processo em segunda instância a fim de chegar à condenação o mais rapidamente possível, impedindo o ex-presidente a se candidatar às próximas eleições.

Convido o leitor, sobretudo meus alunos, a analisar esses elementos com racionalidade estrita. O Direito é feito assim: os argumentos são contrapostos sem paixões, com racionalidade estrita. Vejam como mesmo um grande professor, como Luigi Ferrajoli, pode incorrer em argumentos fracos ou mal construídos e talvez não esteja imune a paixões. Não tecerei nenhum comentário ou juízo de valor sobre o julgamento em si, se Lula é culpado ou inocente. O que interessa aqui é saber se há elementos mínimos para dizer que o julgamento é parcial.

 

O primeiro elemento.

 

No primeiro argumento, o professor Ferrajoli refere-se a uma campanha da mídia orquestrada desde o início do processo contra a figura de Lula. É fato que Lula não tem a simpatia da mídia nem das elites econômicas brasileiras. Acho que todo mundo pode perceber a diferença de tratamento pela mídia entre Lula e Aécio Neves, por exemplo.

 

No que diz respeito ao espaço que ocupa no noticiário, essa diferença até certo ponto se justifica. Lula foi ex-presidente. É uma figura incomparavelmente maior que Aécio. É um mito, alguém que mudou a história do Brasil. É compreensível que a mídia dê mais atenção a ele que a qualquer outro político. Não vejo, contudo, como concluir que a parcialidade da mídia implique em parcialidade dos juízes e do próprio julgamento.

 

O professor diz que essa campanha da mídia foi alimentada pelo protagonismo dos juízes. É como se os juízes tivessem pautando a Globo. Acho difícil acreditar isso. Não sei o que o professor Ferrajoli quer dizer com protagonismo dos juízes. Ele não disse no texto de que forma esse protagonismo seria exercido. Talvez esteja se referindo indistintamente a juízes e procuradores, já que na Itália ambos são chamados de juízes.

 

Até aqui, tenho visto uma conduta muito reservada do juiz Sergio Moro, técnico, contido, paciente ao extremo, como se viu diante das tantas provocações dos advogados de Lula nas audiências. Nesse tempo todo, talvez Moro tenha dado uma ou duas entrevistas, sem se referir especificamente ao processo de Lula. Irrepreensível. Também li uma única entrevista do desembargador Gebran Neto, na mesma linha, sóbrio, contido, não se manifestou sobre o caso.

 

De outro lado, é bom lembrar que a publicidade é corolário do devido processo legal. A publicidade é uma garantia do réu e da sociedade. A sociedade precisa saber qual a acusação, com base em que provas e como se chegou à condenação ou absolvição. Quanto aos procuradores, eles costumam se manifestar mais porque é dever deles informar ampla e irrestritamente a toda a sociedade sobre a acusação que estão patrocinando. Mais que um poder, é um dever dos procurados fazer isso. Sem isso, estaríamos vivendo um processo sigiloso. O sigilo pode servir para condenar ou absolver indevidamente. A publicidade permite que o trabalho de juízes e procurados seja amplamente fiscalizado.

 

A imparcialidade exigida dos acusadores também é diferente. Todo acusador precisa fazer um pré-juízo da viabilidade da acusação. Nesse sentido, o acusador é parcial, já que faz um pré-juízo. Todavia, esse prejuízo deve ser feito com base em elementos objetivos e concretos, não em razão da pessoa ou de uma ideologia. Nesse sentido, os acusadores devem ser imparciais.

 

Quando acusam, os procuradores dizem por que estão acusando e como pretendem demonstrar a veracidade da acusação. Podem até não conseguir, mas é necessário que eles acreditem na condenação, caso contrário não deveriam sequer processar o réu. Por outro lado, essa crença na condenação não significa que o réu será condenado. Se fosse assim, não seria necessário julgamento. Essas coisas são tão evidentes que me sinto sem jeito de estar repetindo-as. Mas estou tentando encontrar o ponto do professor Ferrajoli. Não consigo. A minha conclusão é que o primeiro elemento invocado para demonstrar a parcialidade dos juízes é muito fraco.

 

Deve-se dizer, ainda quanto às manifestações publicas da acusação e da defesa, que as manifestações dos procuradores que tenho visto são quase sempre técnicas, objetivas, racionais e se fazem no intuito de esclarecer à sociedade. A defesa apela de modo até exagerado para argumentos meramente ideológicos, subjetivos, invoca e incita paixões que nada têm a ver com o julgamento. Isso me parece muito evidente.

 

Poderíamos até afirmar que há uma forte campanha de propaganda, por parte da defesa, para pôr em dúvida o julgamento. Essa campanha, contudo, não se fundamenta em argumentos racionais mínimos, apela aos sentimentos, distorce informações etc. Por esse ponto de vista, é a defesa quem tem se utilizado da mídia de modo reprovável.

 

O segundo elemento.

 

Vamos ao segundo elemento. O juiz teria promovido ativamente as delações premiadas. O professor também não desce a detalhes de como se deu essa promoção ativa das delações. O acordo de colaboração premiada é feito entre os procuradores e os réus. O juiz apenas homologa. Essa espécie de acordo tem sido entendida, inclusive, como um direito de defesa. A colaboração premiada beneficia o colaborador-réu, diminuindo-lhe as penas e tendo sido entendida como um meio eficaz de combate ao crime organizado em todo o mundo desenvolvido, inclusive na Itália.

 

O professor Ferrajoli fala em “tendenciosa petição de princípio na avaliação da prova”. Aqui também ele não desce a detalhes. A petição de princípio é um raciocínio argumentativo circular, tipo “Lula é inocente porque é perseguido e é perseguido porque é inocente”, onde a conclusão “ser inocente” não necessariamente deriva do fato de ser “ser perseguido”. Ele pode ser perseguido e culpado. E onde a conclusão “ser perseguido” não necessariamente deriva do fato “ser inocente”. Ele pode ser perseguido sem ser inocente.

 

Li a sentença do juiz Sergio Moro. Não conheço o processo, mas, por uma análise intrínseca, é possível dizer que a sentença é bem fundamentada, lógica, racional, como se espera de qualquer sentença. Uma observação aqui é importante. O que é verdadeiro ou falso não são propriamente as provas, mas os fatos narrados à luz das provas. As provas indicam se os fatos narrados são verdadeiros ou falsos. O juiz deve construir um argumento racional de modo a justificar como e por que as provas apresentadas autorizam-no a concluir pela veracidade dos fatos. O raciocínio exposto na sentença, ainda que possamos não concordar com ele, me parece muito bem construído.

 

Na sentença, Lula foi considerado culpado pelo crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Isso significa que, à luz das provas apresentadas, o juiz concluiu que ele solicitou ou recebeu vantagem indevida ou, ainda, aceitou promessa de tal vantagem em razão da função de Presidente da República. Vejam bem: para que se configure o crime de corrupção passiva não é necessário que Lula tenha recebido a vantagem, nem é necessário que ele a tenha solicitado, basta que ele tenha aceitado a promessa de tal vantagem. Mais. A vantagem pode ter sido prometida em razão da função de Presidente, antes ou depois de o agente tê-la exercido. Não é necessário que a promessa de vantagem tenha sido aceita pelo agente enquanto no exercício da função. Isso é o que diz a Lei.

 

Assim (e aqui falo em tese), o crime de corrupção passiva está configurado se: (a) um ex-Presidente tenha recebido um triplex de presente; ou (b) um ex-Presidente tenha solicitado, ainda que não tenha recebido um triplex; ou (c) um ex-Presidente tenha aceitado a promessa de receber um triplex, ainda que não tenha recebido nem solicitado. Em qualquer dessas três hipóteses, está configurado o crime de corrupção passiva. Não é necessário que a vantagem seja um triplex, pode ser uma negociação diferenciada para compra do triplex, ou uma reforma do triplex. Isso é o que diz a Lei. Isso é coisa básica em Direito, o bê-a-bá. Não há divergências doutrinárias sobre isso.

 

Quanto ao crime de lavagem de dinheiro, o juiz concluiu que Lula ocultou ou dissimulou a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade do triplex. Por isso mesmo não faz sentido dizer que Lula é inocente porque não há documento que prove que o triplex é propriedade de Lula. O crime consiste justamente em esconder, ocultar a propriedade do bem.

 

Não sei se o professor Ferrajoli leu a sentença ou teve acesso às provas produzidas no processo. Mas se pode constatar, a claras luzes, que o argumento da “tendenciosa petição de princípio na avaliação da prova” é muito fraco. E aqui não estou fazendo juízo de valor sobre condenação ou absolvição. Pode-se até discordar da resultado do julgamento, mas daí a dizer que há ““tendenciosa petição de princípio na avaliação da prova” me parece forçado demais.

 

O terceiro elemento.

 

O terceiro elemento de preocupação sobre a imparcialidade do processo seria a simultaneidade com o impeachment. Talvez esse seja o argumento mais frágil. O processo de impeachment, como se sabe, segue rito próprio, é conduzido por pessoas diversas. É basicamente um processo político. Dizer que o processo contra Lula é parcial porque foi conduzido simultaneamente com o impeachment esconde algumas premissas.

 

Para estabelecer a ligação entre o impeachment e a condenação de Lula precisaríamos dizer que Eduardo Cunha, atualmente preso, e todos os deputados e senadores que votaram a favor do impeachment estão em conluio com os juízes e procuradores que os investigam. Para além de fraco, é um argumento verdadeiramente estranho se não acreditarmos em teorias da conspiração, tipo Estados Unidos exercendo o softpower e direcionando o trabalho dos juízes, delegados, procuradores, desembargadores e ministros dos tribunais superiores, para além dos deputados e senadores. Eu não acredito nisso, mas há gente pra tudo…

 

O quarto elemento.

 

O quarto elemento de preocupação, segundo o professor Ferrajoli, decorreria da notícia de que os juízes teriam apressado o julgamento em segunda instância para tornar Lula inelegível o quanto antes. Esse argumento foi minudentemente rebatido pelo Presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região em resposta a questionamentos da defesa do próprio Lula. A íntegra está aqui: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2017/12/evento-5-despadec1.pdf. Nesse caso, o que impressiona é que o professor Ferrajoli tenha enviado essa carta sem conhecer esse documento.

 

Conclusão

 

A minha conclusão é que os 4 elementos do professor Ferrajoli são frágeis para suspeitar da parcialidade do julgamento de Lula. Acresça-se a isso o fato de que Lula é um réu poderoso, tem muitos, bons e caros advogados. Apresentou todos os recursos possíveis e imagináveis, inclusive em órgãos internacionais. Faz ampla campanha na mídia e nas redes sociais, muito maior do que a acusação poderia ser capaz. A condenação de Lula, de fato, surpreende.

 

No Brasil, apenas 0,06% dos presos estão presos por crimes de corrupção ou colarinho branco. Há cerca de 60 mil homicídios todos os anos, mas apenas cerca de 8% deles são elucidados. A maioria das vítimas são jovens, negros e pobres. Isso significa que 92 de cada 100 assassinos escapam impunes sem, ao menos, serem incomodados pela política. A taxa de elucidação é ainda menor em crimes do colarinho branco. É muito difícil processar e condenar pessoas ricas e poderosas, mas isso não significa que, nas raras vezes em que isso ocorre, essas pessoas estejam sendo perseguidas.

 

O professor Luigi Ferrajoli, a quem renovo minha admiração, termina sua carta manifestando a esperança de que os desenvolvimentos sucessivos do processo desmintam suas preocupações. Eu termino a minha manifestando a esperança de que, um dia, nós possamos ter um país mais justo e igual para todos, onde políticos acusados de crimes de corrupção possam ser processados e julgados sem tanto alarde. Onde os juristas estejam mais ocupados em fazer a Justiça valer para os perseguidos pobres de todos os dias, aqueles que morrem aos milhares nas periferias, sem direito a segurança, saúde e educação, por causa dos crimes praticados pelos perseguidos ricos.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

 

P.S. É importante dizer que o professor Luigi Ferrajoli, a rigor, apenas manifesta preocupações e torce para que elas sejam desmentidas. Não faz propriamente uma acusação de parcialidade da Justiça. A Carta Capital, contudo, intitulou assim a matéria: Luigi Ferrajoli: é clara a parcialidade no julgamento de Lula. Mais um exemplo da paixão que domina o debate e do poder que tem a defesa de utilizar a mídia a seu favor.

O Primado da Lei e a Construção da Nação: Qual a Missão dos Juristas?

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O julgamento de Lula está marcado para o dia 24 próximo. O PT promete manifestações de protesto em todo o país, diz que uma eleição sem Lula é uma fraude. Ontem, o PSOL emitiu nota em favor de Lula disputar a eleição. Tanto PT quanto PSOL prestam um grande desserviço à nação. Menosprezam a Lei.

A postura dessas agremiações partidárias equivale a uma carteirada, uma carteirada-mor. Algo do tipo “você sabe quem está condenando?” A Lei que deveria valer para todos, não pode valer para Lula. Essa postura não é exclusiva do PT e do PSOL. O Senado teve reação semelhante quando a Primeira Turma do STF determinou o afastamento do Senador Aécio Neves de suas funções.

Variações sobre um mesmo tema. Vemos tantas, todos os dias, das mais altas autoridades às mais baixas, dos mais ricos aos mais pobres quando se veem de posse de qualquer nesga de poder. Por trás disso tudo está o mesmo desrespeito ao “equal justice under the law”: a maior desgraça do país. Nem a falta de educação, nem a falta de saúde, nem a falta de segurança são desgraças maiores. Os pobres são deixados à míngua, sem educação, sem saúde e sem segurança pela mesma causa: falta de respeito ao princípio da igualdade de todos perante a Lei.

Nossos líderes não acreditam na igualdade de todos perante a Lei. E bem sinceramente, a classe média também não, mais especificamente, a classe média alta. É cultural, nós nem percebemos isso, mas está lá o tempo todo. Não nos ensinam nas escolas que a Lei vale para todos e que a certeza de que valha para todos é um dos maiores valores de uma República. Isso não importa e não se importam com isso. Mas sem isso, nós viveremos inseguros, frustrados e com medo, como temos vivido.

Quando discutem suas políticas, quando discutem e aprovam leis, a maioria não imagina realmente que a Lei deve valer para todos. Muitas vezes, partem do pressuposto cínico de que eles, os ricos, os poderosos, os bem-nascidos acharão maneiras de escapar ao império da Lei. A Lei é meramente simbólica. Existe em potência, mas dificilmente se concretiza. Infelizmente, não conseguimos ainda implantar um Estado de Direito entre nós. Essa é a nossa grande desgraça e o maior desafio de nossa geração.

É fácil ver como estamos longe disso. Quantos homens públicos defendem o primado da Lei, de verdade, para além das disputas partidárias? Muitos defendem Lula, muitos defendem Aécio, alguns poucos defendem Temer, muitos defendem partidos e cargos, mas poucos conseguem ver a importância de que a Lei seja aplicada de modo justo e igual para todos os brasileiros, ricos e pobres, senadores, juízes ou peões. Ainda menor número lutaria por isso.

Quem mais sofre são os mais pobres. Para os pobres não há polícia nem Justiça. Não há delegacias nas periferias. Não há a quem recorrer se são assaltados ou mortos. Também não há julgamento para os criminosos pobres. São mortos entre si ou pelas milícias. Tudo normal. A maioria não se importa. Ninguém vê nisso uma injustiça grave. Para os pobres também não há educação nem saúde. As verbas são tragadas pela corrupção.

Os 17 mil juízes brasileiros, a muito custo, têm procurado fazer valer a igualdade de todos perante a Lei, mas comunicam isso muito, muito mal. No Brasil, mesmo pessoas bem informadas pensam que nós temos um sistema processual ok, operado por péssimos juízes. É preciso dizer com todas as letras: nós temos um modelo processual péssimo, com alguns operadores cegos, alguns desesperançados e conformados e outros desesperados. É dever de todos aqueles que vivem do, com e para o Direito denunciar isso.

O primeiro e o derradeiro dever de todo jurista – e aqui chamo juristas todos aqueles que vivem do, com e para o Direito – é construir e proteger o Estado de Direito. É garantir que a Lei seja respeitada e aplicada de modo justo e igual para todos. Não importa se são professores, advogados, promotores, juízes ou professores.

Os juristas, cada um de sua posição, deveriam todos mirar um objetivo comum: debater segundo a razão, dentro de regras justas, e definir, por meio desse debate, a Lei que valerá para todos e que será o abrigo seguro de todos os brasileiros. Ao invés disso, alguns são instrumentalizados, vergam, torcem, distorcem, retorcem, subvertem, escamoteiam a Lei para que uns continuem mais iguais que outros.

É preciso dizer que, no nosso modelo, por mais que trabalhemos, é praticamente impossível assegurar que a Lei seja aplicada de modo igual para todos, em tempo razoável. Estamos muito longe disso. Tão longe quanto deveria ser nosso compromisso em denunciar esse estado de coisas. Precisamos de mudanças legislativas. Precisamos do compromisso das autoridades públicas e dos políticos. Precisamos de mobilização social.

Sim, temos visto em todo o país juízes abnegados, procuradores e promotores competentes e corajosos, temos visto algumas mudanças, os criminosos, mesmo os ricos e poderosos, já não se sentem mais tão à vontade. Há motivo para esperança. Mas tudo isso será nada se não percebermos que o que nos deve mover é algo ainda maior. Compreende e ultrapassa tudo isso. O que nos deve mover é a construção de uma nação onde todos os brasileiros, do mais rico ao mais pobre, possam confiar que a Lei será aplicada de modo justo e igual para todos.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?