Quando tentamos resolver uma questão jurídica de modo adequado, o primeiro passo é entendê-la de modo adequado e apresentá-la de modo adequado. Não falarei propriamente sobre as conversas hackeadas entre Moro, Dallagnol e os procuradores da Lava Jato. Em primeiro lugar porque há uma acirrada disputa em torno do tema onde argumentos racionais parecem ser os menos importantes; em segundo, porque me parece impossível, pelo menos por enquanto, chegar a uma conclusão segura em qualquer sentido.
Tentarei apenas expor as premissas que me parecem as mais importantes para se decidir se houve ou não parcialidade na Lava Jato, a partir das conversas hackeadas. Falarei sobre o comportamento de qualquer juiz em qualquer processo criminal complexo e suas implicações sobre como podemos interpretar e qual o valor podem ter conversas eletrônicas hackeadas.
A primeira premissa: o juiz não pode estar comprometido com nenhum resultado do julgamento, não pode compactuar nem com a acusação nem com a defesa, no sentido de conduzir o processo a um determinado julgamento ou a facilitar um determinado resultado. Essa é a premissa fundamental, a regra de ouro. Se for quebrada, o julgamento é injusto e deve ser anulado.
A segunda premissa: no direito brasileiro o juiz não é completamente neutro, embora deve ser imparcial. Entre nós, é amplamente admitido, sem qualquer dúvida na doutrina ou na jurisprudência, que o juiz busque a chamada verdade real. O juiz pode determinar a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (art. 156, II, CPC), ainda que as partes não tenham pedido; é o juiz quem interroga o réu, faz as perguntas e conduz o interrogatório (arts. 187 e 188, CPC); o juiz pode determinar que testemunhas sejam ouvidas, mesmo que não tenham sido arroladas nem pela acusação nem pela defesa (art. 209, CPC); o juiz pode determinar a juntada aos autos de documentos que nenhuma das partes pediu (art. 234, CPC).
O nosso sistema é bem diferente do sistema americano que vemos nos filmes. Nos sistemas da commom law, o juiz não pode interferir no curso do processo, não pode arrolar testemunhas, juntar documentos, determinar diligências. Lá o juiz fica absolutamente inerte, acusação e defesa disputam livremente a melhor versão dos fatos: que vença o melhor. Se o réu quiser, pode até deixar de contratar um advogado e patrocinar sua própria defesa, o juiz não pode interferir. Isso não é possível aqui, pois o réu seria considerado indefeso e o processo seria nulo. Aqui, o juiz está, de certo modo, comprometido com o resultado justo do processo, mas não pode se comprometer nem com a acusação nem com a defesa.
Nosso sistema está mais próximo do sistema italiano, onde juízes e procuradores ou promotores pertencem à mesma carreira, ambos são magistrados e, portanto, atuam com muita proximidade, do que do sistema americano, onde os juízes ficam muito mais afastados do órgão de acusação. No Brasil, se entende que, embora o Ministério Público esteja comprometido com a acusação e, portanto, tenha uma atuação parcial, não tem a obrigação de pedir a condenação. O Ministério Público pode, inclusive, pedir a absolvição, é o órgão acusador, mas também está comprometido com um julgamento justo, ainda que em uma medida diferente.
Essa característica no nosso sistema se manifesta, inclusive, em um nível simbólico. Nas salas de audiência e julgamento, promotores e procuradores sentam-se ao lado direito dos juízes, não assumem a posição propriamente de advogados. Nos tribunais também é assim, inclusive no Supremo Tribunal Federal. A Procuradora Geral da República senta-se ao lado direito do Presidente da Corte, participa do lanche nos intervalos de julgamento, tem acesso à Corte pelo mesmo acesso dos Ministros. Enquanto os advogados fazem suas sustentações e defesas da tribuna, os promotores e procuradores atuam da bancada, o mesmo lugar reservado aos juízes. Normalmente os membros do Ministério Público têm acesso mais facilitado aos juízes que os advogados.
Como se vê, o nosso sistema é mais ambíguo, mas a esmagadora maioria dos doutrinadores, além das decisões judiciais, não duvida que é um sistema capaz de produzir julgamentos justos. Embora haja alguns poucos questionamentos de uma minoritária doutrina a essa configuração, a verdade é que ela é muito antiga e amplamente aceita no Brasil, inclusive pela norma constitucional que equipara os deveres, vedações e garantias de magistrados e membros do Ministério Público (promotores e procuradores). Ademais, esses questionamentos são feitos de lege ferenda e não de lege lata, ou seja, o que se argumenta é que a Lei deveria mudar, estabelecendo uma nova configuração e não que essa configuração é inconstitucional.
Eu, particularmente, acredito que o juiz deveria ser mais inerte e equidistante das partes. Melhor seria que o juiz não pudesse produzir prova e que os promotores e procuradores tivessem o mesmo tratamento dos demais advogados, mas o meu argumento também é de lege ferenda. Ou seja, o fato é que nosso sistema não é assim. E, como eu disse, é amplamente aceito como um sistema capaz de produzir justiça.
A terceira premissa: por conta dessa configuração, é comum, sobretudo em casos complexos, que juízes, promotores e investigadores troquem informações, dentro de determinados limites. Quando o juiz autoriza uma grande operação de prisão ou busca e apreensão, por exemplo, há de coordenar com a polícia e o Ministério Público a melhor data, horário e lugar para ser feita, de modo a ocasionar o menor prejuízo à investigação, aos investigados e às pessoas que, eventualmente, possam ser indiretamente atingidas.
Quando o juiz autoriza escutas telefônicas, por exemplo, muitas vezes os pedidos e as decisões se sucedem muito rapidamente. A Lei não proíbe que, em casos urgentes, o juiz despache pelo celular ou pelo e-mail, desde que tudo seja documentado no processo. Isso, na verdade, é indispensável. Em alguns casos, criminosos trocam de linhas telefônicas duas ou três vezes por semana, sucessivos pedidos de quebra são necessários, buscas e apreensões têm que ser apreciadas com urgência para que provas não sejam destruídas. Se não houver uma comunicação célere, em tempo real, entre os juízes e os procuradores e investigadores, algumas operações simplesmente seriam impossíveis.
O juiz não joga no mesmo time dos procuradores e policiais, mas normalmente enxerga-os como agentes públicos, servidores pagos pelo Estado, que, em alguma medida, estão comprometidos com um julgamento justo e não com a condenação a qualquer custo. Isso pode ser um erro do nosso sistema, mas é assim.
Quarta premissa: para se entender todo o conteúdo de uma conversa em um aplicativo de mensagens, como Whatsapp ou Telegram, é fundamental entender o contexto de fala. O contexto de fala é estudado há muito tempo pela Teoria da Linguagem, é o que os filósofos chamam pragmática. Basta pensar em nossas próprias conversas. Qualquer pessoa que tenha suas conversas eletrônicas devassadas precisará dar muitas explicações para a mãe, a avó, a tia, o namorado, os amigos, o marido, a esposa. Essas conversas são muito rápidas, há muito conteúdo implícito, sentido figurado, piadas internas, enfim, expressões e modos de exprimir que só os participantes da conversa ou do grupo são capazes de entender completamente. Pode ser fácil captar informações objetivas dessas conversas, como por exemplo: “nos encontraremos tal hora em tal lugar”, “a cor do carro é azul”, “depositei tantos reais para fulano”, mas é difícil captar intenções, estados de espírito. Wittgenstein diria que cada conversa tem o seu próprio jogo de linguagem. É preciso checar com cuidado todo o histórico das mensagens e o contexto no qual foram trocadas, inclusive sua relação com os fatos que estavam ocorrendo no momento em que foram trocadas.
Quinta premissa: a doutrina e alguns julgados dos tribunais brasileiros entendem que a prova ilícita pode ser usada para beneficiar o réu. Isso, contudo, ainda não é completamente claro no direito brasileiro. Muitas questões nunca foram decididas pelos tribunais pátrios, como por exemplo: qual prova ilícita pode ser usada, qualquer uma ou apenas aquela que tem o potencial de deixar a inocência do réu livre de qualquer dúvida? Qualquer uma ou apenas aquela que foi produzida pelo próprio réu? É admitida a prova ilícita para absolver o réu, mas é também admitida para anular o processo?
Voltemos para as conversas hackeadas entre Moro, Dallagnol e os procuradores da Lava Jato. Parece impossível, por enquanto, chegar a conclusões com as informações que foram publicadas. O certo é que as conversas hackeadas são provas ilícitas para comprovar a suspeição do julgador. Resta saber (a) se essas provas ilícitas podem ser aceitas não propriamente para beneficiar o réu, mas para anular o processo; (b) se as mensagens são verídicas; (c) qual o contexto em que as mensagens foram trocadas. Se elas podem ser aceitas, se são verídicas e se o contexto indica comportamento comprometedor, resta ainda perguntar (d) se são capazes de, sozinhas, comprovarem a parcialidade do julgador, ou seja, que ele estava previamente comprometido com o resultado do julgamento.
O julgamento dessas questões pelos tribunais competentes poderá ajudar a definir melhor os papéis de juízes e procuradores, reafirmando o nosso sistema ou até mesmo sendo a mola propulsora para sua modificação. Resumo da ópera: no Direito, a solução de questões aparentemente simples envolvem raciocínios complexos, com uma série de consequências para casos futuros e, algumas vezes, até para a configuração do próprio sistema.
Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal. Doutor em Direito. Professor da UniChristus. Autor no livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?