Os Juristas no Jardim da Infância

 

Nagibe de Melo Jorge Neto**

Fiquei me coçando, me revirei a noite toda repassando os argumentos. Acordei cedo sob o impacto febril da impossibilidade que surpreende. A interpretação é tarefa difícil. A hermenêutica nos mostra que as palavras que tanto nos aproximam também nos separam e nos engolfam. Lembro a torre de Babel.

Seria possível que Lênio Streck, aquele com quem aprendemos sobre as armadilhas da argumentação e a falácia dos princípios como encantamentos, palavras mágicas que poderiam modificar a realidade tout court, estivesse correto? Esfreguei os olhos. Revolvi checar, afinal li seu artigo já tarde da noite, o sono me embotando o pensamento, quicá exacerbando a crítica. Esse encantamento do Direito e dos princípios é realmente poderoso. Pois não é que o próprio Streck caiu vítima do feitiço. Explico.

Streck opõem-se (nesse artigo) às ideias lançadas por Sergio Moro e Antônio Bochenek, em artigo publicado em O Estado de São Paulo, sob o título O problema é o processo. Ali os autores defendem, entre outras coisas, que o processo penal brasileiro precisa ser urgentemente modernizado, sob pena de jamais conseguirmos combater, com uma mínima eficiência, a criminalidade que grassa em terrae brasilis.

O busílis da questão, nó górdio que jamais se ousa cortar, é a prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Como!? E a presunção de inocência!? Vamos aos argumentos de Streck que não conseguiram me convencer. Talvez eu não tenha alcançado a profundidade do pensamento. Peço licença para refazê-los da melhor maneira ainda que em síntese, comentando-os brevemente.

1.  A proposta solapa as conquistas civilizatórias. Aqui implicitamente se defende que o Brasil é mais civilizado que Estados Unidos, Grã Bretanha, França, Alemanha e outros países do odioso mundo ocidental desenvolvido, já que em todos eles é plenamente possível a prisão antes de esgotados todos os recursos no processo penal.

2. Um jornalista foi capaz de ver a inconstitucionalidade da proposta. Se é tão simples que até o insuspeito Reynaldo Azevedo viu problemas na proposta, todo jurista devia entender que a coisa é inconstitucional. Esse argumento me deu arrepios. Não pelo Reynaldo, mas porque algumas vezes os não iniciados não são capazes de ver o chifre na cabeça do cavalo, outras vezes, veem dois.

3. Os juízes fragilizam a autonomia do Direito expondo-se à predação pela Moral e pela Economia. Definitivamente esse foi o melhor argumento. De fato, o Direito não pode ser predado nem pela Moral nem pela Economia, mas é urgente que o Direito de terrae brasilis preste contas com a Moral, com a Economia e com o Real. Streck cita o The Guardian, para quem o Brasil é pré-moderno. Acrescento: muitos de nossos juristas estão no medievo, quando o Direito era visto promiscuamente imiscuído com as práticas religiosas e mágicas, o Direito como fórmula de encantamento. Bastava pronunciar um fórmula para transformar a realidade. É aqui que entra o jardim da infância, pois é próprio da criança o pensamento mágico e simbólico ainda dissociado da realidade.

Hoje, ainda acreditamos no Brasil que as leis sozinhas são suficientes para modificar a realidade e a Constituição é mágica. Não há dúvidas: sim, o Direito é sagrado. Mas falta-nos o Iluminismo e seu redentor contato com a realidade. Falta-nos a ousadia para modificar a realidade por meio do Direito. Pois o Direito também é um instrumento, um instrumento sagrado, mas um instrumento. E ficamos de pés e mãos atados. Enquanto a criminalidade grassa, a impunidade campeia, sonhamos com os princípios constitucionais como entidades dissociadas das necessidades humanas, inclusive necessidade de concreção argumentativa sólida, fundada em elementos da realidade, como tão bem defende o próprio Streck.

Ao final, enchemos o processo de garantias, recursos, prazos, prescrições, incidentes, possibilidades infinitas e infindáveis de habeas corpus, e atribuímos a culpa da nossa desdita à falta de eficiência da Justiça. Bem como o Brasil, que gasta toda a água e a energia do mundo e depois atribuí a culpa a São Pedro. Que se dane a realidade. Pois eu sou capaz de dizer: com o processo penal que temos, nem se ocupássemos metade da população com o sistema de Justiça teríamos melhoras. Ao contrário. Qualquer efetividade teria o efeito deletério de desempregar muita gente. E a Constituição continua um simulacro ou um símbolo vazio, como já bem explicaram Luiz Moreira, Marcelo Neves e o próprio Streck, ou eu estou enganado? Há ainda alguns argumentos.

4. A crítica é científica porque, no mínimo, dois juízes da Suprema Corte saíram com duras críticas aos colegas juízes. A mesma Supremo Corte que até o julgamento do habeas corpus 84.078/MG, em 2009, entendia que a prisão poderia ter lugar antes do trânsito em julgado.

5. Constituição e processo, como conquistas civilizatórias, são trocadas por um regime de exceção e quem dita o que é exceção é o soberano, donde a ausência de garantias. A exceção seria ditada pela Lei, a Lei é feita pelos representantes do povo e interpretada pelos juízes e pelos advogados, por meio de argumentação sólida, como sempre deve ser. Não há motivo para pânico.

6. Juristas devem lutar dentro das regras do jogo. Eis a nossa desgraça! Essa frase resume tudo. Muitos de nossos juristas estão no jardim da infância em algum lugar na Idade Média ensinando catedraticamente aos nosso jovens: nenhuma concessão à realidade! Se não conseguimos punir os criminosos porque nossa lei processual impõe altíssimos custos, impossíveis de serem suportados mesmo por países ricos, custos que se materializam em tempo, pessoas, infindáveis recursos, que se dobre a realidade. O Direito não precisa prestar contas à Moral, à Economia nem ao Real. É mágico.

P.S.: Não estou defendendo de modo algum que a luta pelo Direito se dê fora das regras do jogo. Digo apenas que os juristas devem sempre ter uma postura crítica com relação a tais regras. Em sendo o caso, que sejam capazes de ver sua dissonância com a realidade, que sejam capazes de propor modificações para que o Direito cumpra o seu papel libertador: conceder aos homens a Justiça.

** Juiz federal. Mestre e doutorando em Direito. Autor das obras Sentença Cível: teoria e prática e O Controle Jurisdicional das Políticas Públicas.