Se a Democracia Perecer Amanhã

Democracias dependem do Estado de Direito, essa coisa que ingleses e americanos chamam rule of law. Sem rule of law, as democracias não funcionam, não florescem.

Para dizer que vivemos em um Estado de Direito, duas condições mínimas devem ser observadas: (a) todos sabem ou podem saber qual é a Lei; (b) a Lei se aplica de modo igual a todos. Parece simples, mas não é fácil cumprir esses requisitos. No Brasil, ainda não conseguimos.

As recentes idas e vindas da Suprema Corte para decidir se a prisão em segunda instância é ou não possível, à luz da Constituição, ilustram bem o ponto. A insegurança jurídica gerada pelas sucessivas decisões tem dado azo a todo tipo de manifestações, desde grupos políticos que ameaçam partir para a luta armada se Lula for preso, até generais do Exército que falam em intervenção militar se ele não for.

Se todos soubessem de antemão qual a Lei em vigor: possibilidade ou impossibilidade de prisão após condenação em segundo grau; se a Lei fosse aplicada para todos, não importa se Lula, Aécio, Eduardo Cunha, Temer ou o Seu Zé, teríamos mais racionalidade no debate público e maior respeito à democracia.

Esse é apenas um exemplo que se aplica a muitas outras situações, em que se evidenciam dois problemas: (a) não sabemos qual a Lei em vigor porque a interpretação dos tribunais muda com espantosa frequência; (b) não conseguimos aplicar a Lei de modo igual para todos. É extremamente difícil punir ricos e poderosos e assustadoramente fácil prender, até matar, jovens negros pobres.

Toda democracia, em uma hora ou outra, vive momentos de tensão excruciante, como o que vivemos agora. O que salva a democracia nessas horas é a Lei, a clareza da regra do jogo e a certeza de que será aplicada de modo igual para todos. Imagine um jogo de futebol em que pênaltis não fossem marcados ou só fossem marcados contra um dos time ou contra alguns dos jogadores. Terminaria em pancadaria.

Com a democracia é igual, o que nos mantém unidos é a certeza de que a Lei, nosso código de convivência, será aplicada de modo igual contra ou a meu favor, contra ou a favor de quem quer que seja. Quando temos essa certeza, aceitamos derrotas e comemoramos vitórias. Quando essa certeza nos escapa, recorremos às amizades, ao suborno, à corrupção ou até à força bruta para impor nossa vontade. É o salve-se quem puder e dane-se a Lei.

Se a democracia perecer amanhã, não poderemos dizer se acabou antes ou depois do Estado de Direito. Se escapar, é bom levarmos mais a sério a rule of law.

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

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