Rule of Law, Justiça e Argumentação: o discurso dos juristas.

Nagibe de Melo Jorge Neto

A civilização ocidental demorou milênios para atingir o estágio de organização política que se funda no rule of law. Esta é uma conquista tão impressionante quanto ainda pouco valorizada entre nós.

O que significa o rule of law? Significa que a Lei governa sobre os homens, significa que o Direito deve ser observado acima de outros valores, significa que abrimos mão de nossas crenças, de nossas preferências mais íntimas, de nossas idiossincrasias, do idealismo juvenil em prol de um acordo fundado na Lei, donde dimana um significado social e político maior. O rule of law significa que acreditamos no Direito como modo de atingir a Justiça, ainda que isso seja um projeto de longo prazo. Acreditamos que seguir a Lei e o Direito nos trará a Justiça.

Aplicar a Lei, algumas vezes, é como tomar um remédio amargo, um remédio que terá efeitos colaterais dolorosos, mas continuamos dispostos a seguir o tratamento. Mesmo assim acreditamos que aplicando a Lei e somente aplicando a Lei com igualdade (equal justice under the law), traremos segurança para todos, desestimularemos os crimes, indicaremos de modo claro o caminho da Justiça.

Pela crença no rule of law podemos aquilatar o grau de maturidade democrática de nossas instituições. Tomemos como exemplo o impeachment. Muitos, inclusive juristas, argumentam que o pedido de impeachment (a) foi acolhido por quem não tinha autoridade moral para fazê-lo, (b) que foi mero oportunismo político, (c) que Temer é pior que Dilma, por isso devemos apoiar Dilma; (d) que nunca antes na história desse país se combateu tanto a corrupção; (e) outros fizeram pior (sobre o impeachment falei aqui)

Ficamos a avaliar qual seria o melhor posicionamento a partir de uma perspectiva política, idealista, ideológica ou, até, fundados em sentimentos de afinidade, simpatia ou de simples intuição, uma intuição que não podemos explicar, mas podemos sentir quase palpável: um arroxo no peito, um nó na garganta, a explosão de fúria em argumentos desconexos.

As discussões se alongam. As possibilidades parecem infinitas, infindáveis. E tenebrosas. Tudo parece ser possível, pois não estamos limitados pela Lei. Ao revés, tentamos usar a Lei para chegar a nossas próprias conclusões. A Lei deve ser aplicada, mas apenas se for conveniente ou oportuna sua aplicação. O problema é que não controlamos esses critérios de conveniência e oportunidade e o sistema todo fica enfraquecido.

O rule of law exige de nós, ao contrário, uma outra postura. As discussões dos caminhos possíveis e de suas consequências são limitadas por algo que aceitamos antes e que já está acima de nós: são limitados pelo Direito e pela Constituição. São limitadas pelas decisões anteriores de casos parecidos. Em suma, são limitadas pela Lei. Ainda que as consequências sejam amargas, escolhemos esse caminho. Colocamo-nos a serviço do Direito.

Isso limita ou deveria limitar nossas possibilidades argumentativas, pelo menos a nossa, dos juristas. Mas muitas vezes não é assim que acontece e nos envolvemos em disputas ideológicas, éticas, morais e deixamos de lado a Lei, às vezes com o claro intuito de deixá-la ao largo, no esquecimento. A Lei perde força. Nesse caso não a aplicaremos porque as consequências não são boas; naquele caso a aplicaremos porque as consequências são melhores. Pergunto: boas para quem?

Dei o exemplo do impeachment, mas a conveniência e a oportunidade aparecem em nossa argumentação jurídica nos mais diversos casos. Aparecem encobertas pela astúcia jurídica de que fala George Marmelstein aqui. Os entendimentos são renovados, não há respeito aos precedentes, perdemos o argumento central, deixamos escapar a questão jurídica e ficamos a discutir as consequências, se são boas ou más, para quem são boas ou más?

O primeiro dever do jurista é o respeito ao Direito. O respeito à rule of law. Como a Justiça, os juristas devem estar cegos para argumentos de conveniência política, para argumentos ideológicos, para argumentos econômicos, afetivos etc. A não ser que esses critérios sejam previstos pela própria Lei. Esse é o ponto de acordo básico que deve reger uma sociedade política minimamente amadurecida.

Caso contrário, não poderemos chegar a consensos e nossas discussões jamais terão fim. Ficaríamos angustiantemente presos a questões do tipo: (a) alguém que mata um bandido deve ser punido? (b) a denúncia de um criminoso é válida? (c) o ato de também ter sido traído isenta a culpa do traidor? (d) o ladrão merece ser condenado se o dinheiro roubado foi também de origem criminosa? (e) devemos punir o político que rouba, mas faz? (f) e o governante que alcançou tantas conquistas sociais? (g) a moça bem educada, de família rica, cheia de conflitos emocionais deve ser presa por dirigir embriagada, seu único deslize? (h) o rapaz pobre, criado na rua, família destruída, deve ser punido pelos seus furtos contumazes?

Todo juiz já passou mais de uma vez por situações onde aplicar a Lei é extremamente doloroso. Como seria melhor uma outra lei, um outro caminho! No rule of law, contudo, a resposta para todos esses casos é que devemos seguir a Lei. As angústias éticas, ideológicas e afetivas são deixadas de lado em prol de um valor maior. Nós decidimos fazer isso porque acreditamos que pelo império da Lei, ao longo do tempo, todos serão beneficiados.

É claro que faço uma simplificação para reforçar o meu argumento. A Teoria do Direito admite muitos pontos de interseção entre o jurídico, o político, o ideológico, o psíquico e o afetivo. São, todavia, exceções que confirmam a regra. É no rule of law que está, na maior parte das vezes, nossa segurança, é lá que conseguiremos alcançar a Justiça com o mínimo de consenso.

O Direito, esse desconhecido

Nagibe de Melo Jorge Neto*

Quando escolhi o Direito, não sabia ao certo o que era o Direito. A faculdade me ensinou um pouco, o magistratura e a academia têm me ensinado muito. O trabalho diuturno de descoberta das normas, de interpretação dos fatos, de argumentação, de procurar a resposta, a melhor resposta, o melhor argumento, de procurar sem descanso a solução mais justa para o caso. É isso que fazemos nós, os juristas: os advogados públicos e privados, os juízes, os promotores. Dia após dia.

Meu pai dizia que o Direito é difícil. Muito difícil. Mais que difícil o Direito é frustrante. Uma frustração boa, algumas vezes desconfortável, mas sempre estimulante e desafiadora. Aqueles que vivem do Direito e com o Direito convivem todos os dias com o desconhecido: uma nova interpretação, uma legislação nova, o último precedente do Supremo, o cancelamento daquela súmula do STJ, a superação do entendimento da TNU. E sempre um argumento novo, e sempre a surpresa.

Conviver com o desconhecido é assombroso. Trabalho sisífico. Posso estar enganado, mas não lembro de muitas profissões em que o trabalho do profissional seja estudar, ler, interpretar e reinterpretar textos e contextos. Ao contrário do que pensam alguns, o Direito não é meramente uma técnica de aplicação da Lei. Fosse uma técnica poderíamos aprendê-la, dominá-la e pronto! Uma vez que soubéssemos a receita, repeti-la-íamos e eis o bolo, mais um. Uma falha na execução aqui e acolá, um bolo mais doce, outro mais pesado, outro dia maior atenção e um bolo mais macio, mas sempre o mesmo bolo, sempre a mesma receita, sempre a mesma técnica. Não, não. Nada é tão simples.

O Direito envolve criação e descobrimento à custa de muito estudo, leitura e dedicação. Como costumo dizer aos alunos, quem quiser trabalhar com o Direito, passará o resto dos seus dias lendo e escrevendo, o que pode ser o paraíso para alguns, mas um pesadelo para outros. Muitas pessoas não sabem ao certo o que os juízes e advogados fazem. Bom, se estão fazendo certo, em grande parte do tempo o que fazem é estudar.

Trabalhar com o Direito é estudar o Direito à exaustão e, ainda assim, debater-se todos os dias com os próprios limites, com as fronteiras do que ainda não sabemos, do que ainda não criamos. Trabalhar com o Direito é tentar entender, interpretar do modo mais adequado, uniformizar. Mas nada disso é feito sozinho, o que seria bem mais fácil. E muito mais perigoso. Fazemos isso a muitas mãos, argumentado e contra-argumentando, testando nossos pontos de vista, convencendo e sendo convencidos. Nossa interpretação será sempre desafiada e submetida a um novo teste. Replicamos.

A Justiça nos escapa. Lá vamos nós de novo, ler mais uma vez o dispositivo legal. Será que é isso mesmo que diz a Lei? Será que é isso mesmo que a Lei quis dizer? É isso mesmo que a Lei deve dizer? Interpretar novamente o precedente, buscar a filigrana, fazer da filigrana a pedra angular e interpretar o caso de modo diferente, a uma nova luz, uma luz que seja capaz de descobrir a Justiça.

Ontem participei mais uma vez de uma sessão da Turma Regional de Uniformização e, como acontece também nas sessões da Turma Recursal e todos os dias, essas emoções me vieram novamente, mas de modo mais agudo. Nove colegas, além do presidente, todos afiadíssimos, preparadíssimos, alguns que conheci há mais de dez anos, ainda no concurso. Todos prontos para testar as interpretações e argumentos uns dos outros. Uma arena argumentativa onde, ao menor deslize, qualquer um será sacrificado no altar da Justiça.

Sempre saio cansado, algumas vezes frustrado frente a esse desconhecido Direito, mas também saio leve e com a sensação do dever cumprido. Levo comigo algumas certezas. Sabemos muito pouco, mas isso não é motivo para desesperança. A Justiça, como as estrelas, é inalcançável, mas todas as noites as estrelas iluminam os homens. Fiz a escolha certa. Falo da escolha profissional. Tenho medo dos juízes que têm absoluta certeza de suas interpretações e decisões.

* Juiz federal da 3.ª Turma Recursal do Ceará. Mestre e doutorando em direito pela UFC.