Independência e Remuneração dos Juízes: onde está o abuso?

Estamos vivendo um insidioso e orquestrado ataque à independência dos juízes e dos membros do Ministério Público. É notório. É grave. Enquanto o Congresso Nacional discute a lei de abuso de autoridade, na imprensa, volta-se ao tema da desproporcional, abusiva e absurda remuneração dos juízes.

Essa é uma cantilena constantemente repetida por muitos. Uma parte mal intencionada tem o único e exclusivo objetivo de enfraquecer os juízes. Outra parte amestrada, ressentida ou acrítica vai de roldão. Repete bobagens a respeito da remuneração dos juízes como se estivessem a defender um sistema de Justiça melhor ou como se estivessem a defender a própria moralidade.

A bem da independência dos juízes e dos membros do Ministério Público, a bem do bom debate público de ideias, arrisco-me a esclarecer alguns pontos. Penso que somente assim podemos construir consensos e, mais que isso, prestar contas à sociedade. Não responderei às pedradas, contudo. Advirto, de logo.

A remuneração dos juízes nada tem de absurdo ou imoral. Repito. A remuneração dos juízes nada tem de desproporcional, abusivo ou imoral, que não seja a vontade de manietar, enfraquecer e submeter a magistratura. Como disse Alexander Hamilton, em “O Federalista”, obra que fundamenta, no seu nascedouro, a separação de poderes e a independência do Poder Judiciário, “o controle sobre os meios de subsistência de um homem equivale ao controle sobre sua vontade”.

Não vou me deter sobre o valor ou a composição da remuneração dos juízes. Já tive oportunidade de tratar dessa questão exaustivamente em artigo intitulado “Os Fantásticos Supersalários dos Juízes e Membros do Ministério Público”. Link nos comentários para quem tiver interesse. De lá pra cá, nada mudou.

Acrescento apenas um ponto. Há um argumento contra a remuneração dos juízes que parece bom quando visto de longe, mas é um pouco cretino ou até mesmo cínico quando visto de perto. Argumenta-se que o juiz brasileiro ganha muito se compararmos sua remuneração com a renda média do brasileiro. Isso seria sinal de privilégio e de extrema desigualdade. Enquanto nos EUA, por exemplo, um juiz federal ganha 3 vezes mais do que a renda média da população; no Brasil, os juízes chegam a ganhar mais de 20 vezes mais. Vou chamar esse argumento de argumento da remuneração desproporcional.

O Brasil é um país pobre e de grandes desigualdades. Embora sejamos a 9.ª economia do mundo, somos apenas a 70ª, se considerarmos o PIB per capita. Mesmo assim, conseguimos ter acesso a alguns bens e serviços compatíveis com os de países ricos. A universidade pública, na maioria dos casos, é também a de melhor qualidade. O SUS tem seus problemas, mas os tratamentos para doenças como o câncer, HIV e outras doenças crônicas incuráveis está em linha com o que se pratica nos países ricos. Algumas vezes faltam medicamentos, outras vezes a Justiça é acionada para assegurar o tratamento. E tem assegurado.

Pois bem. Dizer que a remuneração dos juízes é desproporcional é como dizer que o que se paga a médicos e professores é desproporcional. Em um país pobre e desigual como o nosso, tudo é desproporcional. Os valores gastos com tratamento de saúde. Os valores pagos por um carro ou por um computador. Tudo é distorcido sob esse ponto de vista. Por isso, o argumento é cretino. Desculpem a palavra, estou usando-a no seu sentido mais literal. O argumento é raso.

Mas o argumento é também cínico. É como se dissessem que, por sermos pobres, não podemos ter bons tratamentos de saúde nem boas universidades nem boa Justiça, não devemos pagar uma remuneração digna aos professores, aos médicos ou aos juízes.

A remuneração dos juízes é bastante inferior ao que paga a iniciativa privada para advogados com a mesma experiência e preparo. Há alguns anos, a proposta da nossa República foi recrutar juízes e promotores entre os melhores, por meios de concursos públicos sérios, muito disputados e extremamente difíceis. Estamos começando a colher os frutos agora. Frutos ainda tímidos, ainda frágeis. Mesmo assim muitos já sentem e pressentem o perigo. É preciso estancar a sangria. É preciso controlar o meio de subsistência dos juízes.

É claro que o trabalho dos juízes e promotores sozinho não é suficiente. É preciso uma ampla reforma no nosso sistema de Justiça. Quem mais tem pressionado por essa reforma são os juízes e promotores. Estamos, contudo, apegados ao passado, ao patrimonialismo e à impunidade. É difícil avançar, mas juízes e promotores não têm fugido à luta.

Pelo que acompanhamos na imprensa, parece correto afirmar que alguns tribunais apresentam distorções e pouca transparência no que tange à remuneração de seus juízes. Deve-se dizer, que essas distorções não acontecem na maioria dos casos. E, claro, precisam ser urgentemente corrigidas. A imensa maioria dos juízes é a favor dessas correções e de um sistema remuneratório mais racional e transparente para todos os juízes, desembargadores e ministros das cortes superiores. Sem nenhuma exceção. Recentemente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE lançou nota pública ratificando e reforçando esse ponto. Esse é o sentimento geral entre os juízes. Transparência e racionalidade.

Desde 2006, quando foi instituído o regime de subsídios, a remuneração dos juízes acumula perdas que chegam a 40%. Não é insignificante. Os juízes pleiteiam reposição de apenas 16,7%. Menos da metade das perdas. A imprensa trata isso como coisa acintosa. Como se os juízes fossem insensíveis ao momento fiscal pelo qual o país atravessa. Como se os juízes fossem privilegiados com remunerações nababescas. Os juízes pagam contas e contraem dívidas como qualquer pessoa.

O tema é indigesto, mas deve ser enfrentado sem temor e sem diversionismos. Uma coisa é tratar a questão em termos orçamentários e fiscais. Esses argumentos devem e estão sendo considerados seriamente, pelo menos pelos juízes. Outra coisa é aproveitar a oportunidade para achincalhar, diminuir e manietar os juízes, indistintamente.

A reposição das perdas inflacionárias está diretamente ligada à independência da magistratura. É antipático dizer isso, mas é como é. Os assuntos não podem ser discutidos isoladamente. A remuneração da magistratura é uma questão sensível de Estado. Sabe-se disso desde que o mundo ocidental concebeu um Poder independente para assegurar os direitos dos cidadãos, assegurar que a Lei seja cumprida de modo justo e igual por todos e punir aqueles que violam a Lei, inclusive os membros dos demais Poderes da República.

O Poder Judiciário tem falhas. Isso é verdade. O sistema de Justiça funciona muito mal. Isso também é verdade. Isso, contudo, não acontece porque os juízes não trabalham, porque os juízes trabalham pouco ou porque os juízes ganham muito. Aliás, os juízes ganham muito menos do que se apregoa. Muitas outras categorias do serviço público ganham mais e têm melhores condições de trabalho. A remuneração da imensa maioria dos juízes é absolutamente transparente, está disponível na internet, no site dos tribunais respectivos. Todo mundo pode consultar.

Não dá para detalhar todas as causas do mau funcionamento da Justiça aqui. Por isso escrevi um pequeno livro, que pode ser bem compreendido por qualquer pessoa interessada e de boa vontade. Intitula-se Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil? A segunda edição, revista e ampliada, estará disponível a partir de setembro no site da Editora JusPodivm. Nele faço críticas ao Poder Judiciário e reconheço que os juízes têm grande parcela de culpa pelo mau funcionamento da Justiça, mas não a que comumente seus detratores lhe querem atribuir.

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal