Sobre a Possibilidade de Prisão em 2ª Instância

Fiz um pequeno contraponto ao artigo do querido amigo e grande processualista, Professor Doutor Sérgio Rebouças (disponível em https://www.facebook.com/sergio.reboucas/posts/1756945617700180), sobre a possibilidade de prisão após julgamento em 2.ª instância. Ei-lo:

Caro amigo Sérgio Rebouças,

Recebi o seu belíssimo texto em outro grupo; como sempre claro, de raciocínio linear. Escrevo para lhe parabenizar! Infelizmente não concordo com as conclusões do amigo, quis lhe dizer de antemão.

O seu texto é a brilhante visão do processualista que respeito e admiro. Sem pretender convencê-lo da minha própria opinião, ouso apresentar-lhe algumas breves notas. Infelizmente a minha breve crítica não honrará completamente o seu texto, exclusivamente pela exiguidade do tempo. Precisamos marcar para debater isso, mas, nas raras vezes que nos encontramos, há sempre tanta coisa mais importante para falar!

Restrinjo-me, então, a um único e apressado ponto. A sua análise parece ter priorizado uma interpretação literal do texto constitucional. Entendo que seja por segurança, receio que uma interpretação ampliada possa conduzir à violação dos distritos e garantias fundamentais pela Suprema Corte. Valoroso motivo.

No entanto, a avaliação de uma questão constitucional tão complexa não pode dispensar os métodos de interpretação propriamente constitucionais. A teoria constitucional desenvolveu-se inteiramente ao redor desses métodos, pelo menos nos últimos 100 anos.

Mesmo a interpretação literal proposta não foi tão literal, é preciso reconhecer. A Constituição diz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A extensão da culpa é indeterminada no texto. Quando quis falar de prisão, a Constituição o fez expressamente, como no inciso LXI.

À luz da exclusiva literalidade do texto é impossível afirmar que (a) a prisão é permitida após condenação em segundo grau; ou (b) a prisão não é permitida após condenação em segundo grau. Precisamos ir além do texto, através do texto.

A Constituição traz outros princípios de igual estatura ao princípio da presunção de inocência. É objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre justa e solidária (art. 3.º). O art. 5.º, já no caput, assegura o direito à segurança, toda a doutrina o reconhece como um princípio. O art. 37 eleva a probidade administrativa a princípio constitucional. Não há hierarquia entre esses princípios, mas tensão permanente entre eles, tensão que se resolve pela interpretação constitucional.

Como afirmar que a impunidade, a corrupção, o homicídio, a dilapidação do patrimônio público, o latrocínio, o tráfico, o estupro e outros crimes graves não ofendem esses princípios? Como afirmar que nosso sistema legal, que infelizmente não permite punir em tempo minimamente razoável esses crimes não ofende esse princípios? Você mesmo parece concordar em seu texto que o nosso sistema não é o melhor sistema. Ora, se o nosso sistema padece de evidente inconstitucionalidade, por não entregar aos brasileiros aquilo que a Constituição obriga que seja entregue, como admitir que a interpretação constitucional seja outra que não aquela que o torne efetivo?

Os brasileiros não têm uma sociedade livre, justa e solidária. Em grande parte em razão de nossa escandalosa impunidade. A interpretação que você sugere, garante direitos fundamentais de réus acusados de crimes graves e condenados por duas instâncias da Justiça brasileira, mas ofende inadvertidamente os direitos fundamentais de milhões de brasileiros, muitos deles sem voz, sem rosto, marginalizados. Direitos fundamentais à segurança, à justiça, à saúde, à educação, à dignidade, a serem governados por agentes probos, enfim, direito fundamental ao império da Lei: a razão de ser do próprio ordenamento jurídico e do Estado Moderno e, por meio dele, de tudo que conseguimos construir de civilizado nos últimos cinco mil anos.

Entre as duas interpretações qual resulta em maiores benefícios e menores prejuízos para o conjunto da sociedade brasileira? Será que para atingir nossos tão sonhados objetivos e construir uma sociedade livre, justa e solidária, precisamos garantir que condenados em duas instâncias só cumpram pena após a condenação por uma terceira e por uma quarta instância, em processos que nossa legislação faz intermináveis? Será que a prisão após julgamento em segunda instância importará tantas e tão graves ofensas aos acusados a ponto de suprimir os benefícios com a diminuição de nossas assustadoras taxas de impunidade?

Você poderia argumentar: ora, mude-se a lei. Esse é o papel do legislador e não do Supremo. Pois me permita dizer que a Constituição existe para assegurar que os direitos nela inscritos não sejam obstados, afastados ou suprimidos pela injustiça da lei, pela inconstitucionalidade da lei. É precisamente isso que as Cortes Constitucionais têm feito ao longo do último século, asseguram que os valores e princípios constitucionais sejam efetivados, seja quando a voz da minoria é esmagada pela maioria, seja quando a voz da maioria não é ouvida pela minoria parlamentar que capturou o poder.

Querido amigo, esse debate é muito instigante. Não sabemos, afinal, qual de nós tem razão. Espero de todo coração que a Suprema Corte tome a melhor decisão e a sociedade brasileira beneficie-se dela, tendo maior esperança no Direito. Receba essas minhas breves notas como um estímulo ao seu maravilhoso trabalho de doutrinador e marca de meu respeito e admiração.

Forte abraço,

Nagibe de Melo Jorge Neto
Juiz Federal. Doutor em Direito Constitucional. Professor de Direito da UniChristus. Autor das obras: Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil? e Uma Teoria da Decisão Judicial: fundamentação, legitimidade e justiça.

Um comentário sobre “Sobre a Possibilidade de Prisão em 2ª Instância

  1. Professor, acabei de receber um exemplar do seu manual sobre sentença cível. Atualmente estou auxiliando na produção de sentenças em uma vara cível, preparando-me para, quem sabe em breve, obter sucesso e ingressar na carreira da magistratura. Prosseguindo os estudos que, pelo início, já profetizo que serão de grande valia nas minhas lutas diárias em busca de um processo cada vez mais justo, como almeja Calamandrei.

    É uma grande satisfação poder conhecer um pouco além da tecnicidade precisa de sua obra. Maior ainda, coadunar com seus entendimentos.

    Forte abraço!

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