A Constituição Somos Nós

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 completou 30 anos no último dia 5 de outubro. A data não foi comemorada como deveria. Estamos todos angustiados, envolvidos no processo eleitoral mais tenso dos últimos 30 anos. Os dois candidatos que concorrem ao segundo turno das eleições presidenciais deixam dúvidas quanto ao seu compromisso com a ordem constitucional.

Um deles caracteriza-se pelas declarações desastradas contra as minorias e a favor da tortura. O outro chega a dizer em seu plano de governo que não vivemos uma ordem democrática, o tal plano “propõe uma verdadeira refundação democrática do Brasil para recuperar a soberania nacional e popular, atingidas duramente a partir do golpe de 2016”, diz que é necessário convocar uma assembleia constituinte para a instauração de uma nova ordem democrática.

Espanto.

A Constituição da República não merece esse tratamento. Mais reverência, senhores! A ordem constitucional inaugurada pela Constituição de 1988 tem sido construída a duras penas por milhões de brasileiros nos últimos 30 anos. Ela representa o que conseguimos fazer de melhor no Direito, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É um inestimável patrimônio jurídico. Pertence a todos nós, a todos nós obriga e abriga.

Ao contrário do que apregoam, as conquistas sociais das últimas décadas não são monopólio de um partido, PT ou PSDB, Lula ou FHC. Os presidentes não são reis todo-poderosos que põem e dispõem. Eles são bem menores que seus imensos egos podem fazer crer aos incautos. Menos. Menos. É a sociedade, com seus múltiplos atores, quem faz e desfaz. As sofridas conquistas alcançadas até aqui foram resultado de um processo político multifacetado, onde têm grande relevância os movimentos sociais e o fortalecimento das instituições democráticas. O presidente da República submete-se à Constituição e às leis. Isso é o Estado de Direito. Essa é a nossa maior garantia e a certeza de que, apesar dos políticos desastrados ou mal intencionados, continuaremos avançando.

A nossa salvação não está em nenhum político ou candidato. Os políticos e os partidos passam. A nossa salvação está na reverência à Constituição e às Leis, no respeito ao Estado Democrático de Direito e às regras do jogo, que todos devemos observar. Convocar uma assembleia nacional constituinte é drástico, trágico e profundamente desrespeitoso para com o povo brasileiro. Significa iniciar ou acabar uma guerra. As constituintes geralmente acontecem no começo ou no final de grandes conflitos sociais.

A nossa Constituição cidadã tem 250 artigos, mais os 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Já conta com 99 Emendas Constitucionais. Regula quase tudo, tem uma extensão incomum. Muitos a criticam, dizem que ela estaria desfigurada. Há até quem defenda fundar uma nova ordem constitucional, com a substituição da nossa Constituição por outra. Que isso venham de um candidato à presidência sob o argumento que vivemos um período de exceção é espantoso.

Já em 1987, durante os trabalhos constituintes, José Sarney chegou a dizer que a nossa “Constituição tornará o país ingovernável”. Temos vivido, contudo. Temos governado, contudo. Temos evoluído como povo e como nação. Poucos percebem que grande parte do que conquistamos de 1988 até aqui se deve à Constituição. Ela possibilita a alternância de poder, assegura a democracia pelo voto direto, secreto, universal e periódico, promove a proteção e inclusão das minorias, o combate à corrupção, a liberdade de expressão, garante o direito à saúde e à educação. Está tudo ainda incompleto, é verdade, mas, se houve avanços, foram possíveis por ela.

A Constituição, para além do que está escrito, é o sentimento do povo sobre o que está escrito. Esse sentimento se cristaliza ao longo da história, em um lento processo político, jurídico e argumentativo. A Constituição não são só os artigos e as emendas. A Constituição são as interpretações forjadas em milhares de decisões judiciais, são os milhões de debates havidos nas faculdades de Direito, nos jornais, nos movimentos sociais, nas associações, nas escolas, nos bares, nas casas, nas redes sociais. A Constituição sintetiza a maneira como entendemos e como vivemos o Direito.

A Constituição é nossa história jurídica viva, desenrolando-se, guiando-nos, transformando-nos e sendo transformada em um imenso movimento político jurídico em que todos os brasileiros são chamados a participar. Participam pelo voto, participam nos processos judiciais, nos processos legislativos e políticos, participam quando cumprem, quando violam e quando lutam pelo cumprimento da Constituição.

A Constituição de 1988 é, portanto, um imenso monumento social, cultural e jurídico que tem sido construído a duras penas pelo povo brasileiro nos últimos 30 anos. Somos nós. É a nossa história. É o nosso Direito. É o nosso modo de fazer Justiça aprendendo a fazer Justiça. É a nossa tentativa de construir uma sociedade livre, justa e solidária. São os nossos erros e acertos.

Há muitos artigos em nossa Constituição. Há muitas emendas. Não importa. Somos assim, somos possíveis assim, podemos ser uma grande nação assim. Estamos no caminho. Para além de tudo que pode ser e tem sido modificado, a Constituição tem um núcleo duro imodificável, a parte mais importante e sagrada para o nosso povo: as cláusulas pétreas. É em torno desse núcleo de valores sagrados que temos construído a nação brasileira.

A Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, promulgada logo depois da II Guerra Mundial, tem 146 artigos e deveria ter vigência só até que “uma Constituição tenha sido adotada em livre arbítrio por todo o povo alemão”, seria transitória. Ainda hoje, contudo, a Lei Fundamental de Bonn é a Constituição do povo alemão, mesmo depois da unificação das Alemanhas ocidental e oriental. Jamais foi votada uma constituição alemã. O que era transitório tornou-se definitivo porque aquele texto, com suas sucessivas camadas interpretativas, sintetiza os valores do povo alemão, seu sentimento jurídico. O Direito Constitucional alemão e a Constituição alemã são modelos para o mundo todo.

A Constituição dos Estados Unidos da América é a mesma desde 1787. Os americanos passaram por grandes e traumáticas transformações: a Guerra de Secessão, a abolição da escravatura, o movimento pelos direitos civis, as duas Grandes Guerras. Durante todos esses embates, ao longo de quase 250 anos, souberam conservar seu patrimônio jurídico e proteger sua história constitucional.

O maior legado e a maior tarefa de nossa Constituição é a construção de um Estado de Direito, um lugar onde todos saibam qual é a Lei e sejam tratados da mesma maneira pela Lei e por aqueles que aplicam a Lei. Ainda não temos um Estado de Direito perfeito e acabado, mas temos nos ocupado em construir um desde a promulgação da Constituição de 1988. É um trabalho demorado, algumas vezes aflitivo, outras vezes delicado. Apesar de tudo, temos avançado. Sobre o texto da Constituição de 1988, pedrinha por pedrinha, vamos construindo o Estado de Direito.

Se Deus não existe, tudo é possível”. Dostoiévski trabalhou com as consequências desse pensamento no seu imortal romance Os Irmãos Karamazov. Poderíamos dizer: se não há respeito à Constituição, tudo é possível. Mas, felizmente e apesar de alguns políticos, temos um Estado de Direito. São os brasileiros e as instituições forjadas pela Constituição de 1988 que o sustentam, não a ilusão de poder de alguns.

No segundo turnos das eleições de 2018, votarei em quem mostrar o maior apreço pela Constituição de 1988 e pelas instituições democráticas. Sem Constituição, sem Estado de Direito, não há desenvolvimento econômico, não há respeito pelas mulheres, nem pelos gays, nem pelos negros, nem pelos índios, não há saúde nem educação, não há segurança, não há liberdade de expressão.

Vida longa à Constituição de 1988!

Viva o Estado Democrático de Direito!

 

Nagibe de Melo Jorge Neto

Juiz Federal. Professor da UniChristus. Autor do livro Abrindo a Caixa-Preta: por que a Justiça não funciona no Brasil?

 

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